Por Ivone Gebara, no blog Diálogos da Fé, da Carta Capital.
Damares, Tereza Cristina e Michelle constituem a trindade a ser imitada por todas as outras e querem representar o Brasil feminino
Há algo na ministra Damares Alves, outrora jurista e assessora parlamentar, que nos incomoda muito. Não precisa ser feminista para se sentir incomodada! Basta ter um pouco de bom senso e capacidade de olhar os fatos da vida e as explicações e soluções que ela tem dado… Chegamos muitas vezes a duvidar de que fala a partir de suas próprias convicções e que raciocina de forma realista diante dos muitos problemas das mulheres brasileiras. Temos a sensação de que foi posta no cargo de ministra com uma função especial própria aos antigos reinados, função agora já esquecida e quase inexistente. Trata-se da função do ‘bobo da corte’ agora reativada e infelizmente representada por uma mulher.
O bobo fazia rir reis, príncipes e a corte. Desanuviava tensões quando os problemas eram sérios demais. Entretanto muitos ‘bobos’ para além do humor e através dele manifestavam críticas aos poderosos e até ao comportamento do rei e aos costumes da corte. Se sua astúcia crítica era descoberta – e muitas vezes acontecia – eram enviados ao calabouço e condenados à morte.
Hoje vivemos uma situação incomum, quase inusitada, apesar de algumas semelhanças. Temos uma ‘boba da corte’ e isso já é sinal de decrescimento ou crescimento para alguns nas funções femininas conforme as interpretações. O governo Bolsonaro teve a façanha de realizar a inversão de uma história antiga transformando algumas mulheres em bobas acríticas da corte.
A ministra Damares parece ter galgado um lugar que as mulheres não possuíam antes nas cortes tradicionais, ou seja, a de divertir a corte e o público através de sua arte jocosa manifestada em muitas ocasiões sérias. Essa função aparentemente desnecessária na realidade é fundamental para que o povo tenha uma espécie de válvula de escape, uma desopilação do fígado, uma distensão muscular, um desvio de atenção em relação às muitas outras decisões e tensões que ocorrem hoje no governo.
O mais sádico em tudo isso é que em tempos de feminismo, em tempos de lutas por direitos sociais das mulheres, o atual governo escolheu uma mulher, transformou-a em ministra da mulher, entregou-lhe publicamente poder, abriu espaços para que falasse ao povo para dizer coisas risíveis, alucinantes, ilógicas. Às vezes não acredito que ela acredite no que está falando… Intuo que muitas de nós tenhamos criticado a ministra Damares por suas afirmações sobre a cor rosa e a cor azul, sobre a questão da doação de calcinhas para que a meninas da região amazônica não sejam estupradas e outras barbaridades maiores e menores.
Não percebemos sua função política, a de ser ‘boba da corte’. Então a criticamos e a desafiamos a partir do bom senso e das teorias libertárias. Ela, no entanto não renuncia ao seu papel político de ‘boba da corte’, papel de suma importância num governo eleito por uma maioria que acreditou no poder da ordem das armas, que acreditou na representação masculina quase única, que acreditou nos discursos populistas com pouca racionalidade científica à altura da compreensão conservadora e pouco educada do povo brasileiro.
Damares Alves, advogada e ex-assessora parlamentar, não poderia se apresentar de forma tão ignorante dos reais problemas das mulheres e particularmente das jovens e meninas estupradas. Não poderia em tempos contemporâneos aludir as cores rosa e azul para fixar apenas duas identidades de gênero mesmo em tom de brincadeira. Sem nenhuma pretensão a argumentos persecutórios nacionais ou internacionais, creio que a ‘boba da corte’ é obra de uma política que pretende acabar com as aquisições culturais, políticas e sociais que fizemos nesses últimos anos. Usa-se o ridículo, o ilógico, o burlesco como expressões políticas.
A ‘boba da corte’ tem uma função dupla: faz todos rirem e ficarem com raiva. Raiva dela? Ou raiva das mulheres que ela quer representar. Riso dela ou das pretensões das políticas feministas que ela é encarregada de desprestigiar e ridicularizar? E isso tudo é coroado com a palavra ‘cristã’ ou com a palavra ‘evangélica’ pois assim se afirma politicamente e assim mostra um cristianismo cúmplice do atraso e da ignorância da luta por direitos sociais e políticos feministas.
A outra ministra, a da Agricultura, Tereza Cristina Corrêa da Costa Dias, ou simplesmente Tereza Cristina, agrônoma de formação e ex-deputada federal pelo DEM-MS, aparece pouco na mídia, mas ocupa um lugar de muito poder, o poder do agronegócio e ultimamente a defesa da liberação de 262 pesticidas, chamados ‘defensivos agrícolas’. Por isso a chamam ‘a musa do veneno’. Além disso, não parece ter sido impactada pelas queimadas na floresta amazônica, preocupada, sobretudo, com o gado e a soja para exportação.
Não reconhece o papel que tantas mulheres têm assumido na agricultura familiar e na negação de uso dos agrotóxicos. Nem deve saber da história da luta das mulheres contra as usinas nucleares e os tóxicos de diferentes procedências. Desconhece os efeitos de Chernobyl, de Mariana, de Brumadinho e dos milhares de ‘defensivos agrícolas’ que, além dos efeitos destrutivos colocam o Brasil como um dos maiores usuários de droga agrícola. Não pensa no futuro, apenas nos lucros do agronegócio. Ignora ou finge ignorar o controle biológico, as tecnologias naturais e orgânicas e as pequenas iniciativas em pequena escala que tem significado a sobrevivência do solo brasileiro e de seu povo.
Sua figura não é a da ‘boba da corte’ mas a da mulher empresária, aquela que reproduz o modelo patriarcal masculino, que é obediente à ordem capitalista do desenvolvimento sem limites, do crescimento desordenado e por isso tem sucesso. Através dela também aparece a desvalorização da luta das mulheres por alternativas de relacionamento social e político. Ela representa o ideal da mulher forte que conquista espaços nas políticas masculinas tornando-se uma com eles. Ela é cúmplice e contra-ponto da ‘boba da corte’.
E, finalmente, há uma terceira mulher bela, esbelta, jovem e mãe, a esposa do presidente, Michelle de Paula Bolsonaro. Aparece como defensora das carências dos deficientes, intérprete de Libras e evangélica convicta, amiga do pastor Silas Malafaia. Por um lado aparece como a mulher que conseguiu subir na vida, sair da pobreza e galgar o posto de primeira-dama do Brasil, um exemplo invejado por muitas mulheres. Por outro, a mulher caridosa preocupada com os que sofrem.
Mais uma vez de forma simbólica, tem negado a luta feminista na linha da crítica ao capitalismo e à reprodução dos modelos de mulheres consagrados pelos valores patriarcais. Não é a ‘boba da corte’ mas é rainha ou a princesa da corte e cumpre seu papel de reprodutora desse mundo aparentemente forte e verdadeiro. Com as outras duas constitui a trindade feminina a ser imitada por todas as outras. Elas querem representar o Brasil feminino. E, como disse o presidente Jair Bolsonaro depois da proclamação dos encarregados pelos ministérios, ‘há um equilíbrio no governo, pois cada uma das duas mulheres ministras equivale a dez homens’ sem contar evidentemente sua mulher que valeria talvez muito mais.
Tudo isso é uma pálida expressão da luta antifeminista, anti-ecológica, anti-consciência crítica que assistimos não sem reagir de diferentes formas. Qual é o futuro? Cada uma/um deve buscar sua resposta em meio às densas fumaças que cobrem o território nacional.