Carmen Silva, Silvia Camurça, Verônica Ferreira, Rivane Arantes, Fran Ribeiro e Betânia Ávila* – Em especial para Marco Zero Conteúdo.
Todos os dias tem uma frase nova do ocupante do Palácio do Planalto humilhando o Brasil. Muitas pessoas sentem asco ao ler as notícias. Essa situação esta mexendo não apenas com o amor por si mesmo, mas com a dignidade do povo brasileiro. O desânimo soma-se à análise crítica sobre o tamanho do desmonte do Estado promovido por estes que usurparam o poder, e muita gente se sente encurralada e sem condições de enfrentar tudo isso. O movimento feminista denuncia que o desmonte do Estado prejudica muito mais aqueles e aquelas que já estão nas posições sociais mais dominadas e exploradas, as mesmas pessoas que são constantemente humilhadas pelo presidente: as mulheres, o povo negro, os indígenas, a população LGBTI, pessoas encarceradas, a classe trabalhadora, desempregada, todo mundo que vive na miséria e todas as que lutam pela democracia. Como vamos sair dessa?
Esta semana que se inicia dará uma energia nova para as forças da resistência. Nós, mulheres, vamos fazer ecoar nossas vozes nas ruas de Brasília dizendo não a este governo que entendemos como o desdobramento do golpe de 2016. Mulheres de todos os povos indígenas marcham em Brasília em defesa de seus territórios, seus corpos, e seus espíritos. Elas se unem à Marcha das Margaridas, a maior mobilização de mulheres rurais da América Latina. A Marcha é construída em parceria entre as sindicalistas rurais e todos os movimentos feministas da cidade e do campo. Veremos nestes dias, em Brasília, a força política das mulheres incidindo na conjuntura e se somando à força dos/as estudantes e trabalhadores/as da educação, que farão grandes manifestações no dia 13 em todo o país.
O movimento feminista está denunciando a fraude eleitoral já demonstrada e exigindo anulação das eleições, convocação de novo pleito com garantias democráticas e seguirá na luta por nenhum direito a menos. Mas, o que estamos enfrentando é muito mais que um presidente desprovido de qualquer senso de dignidade. Ele está sustentado por forças mais poderosas que estão destruindo o patrimônio público brasileiro, quebrando a economia, anulando os direitos conquistados pela classe trabalhadora e subordinando o país às políticas das megacorporações mundiais e dos Estados Unidos.
Nossa análise parte de um olhar para o atual momento político e econômico do mundo. A extrema direita, de tendências fascistas, cresce em vários países. Nesta conjuntura está em curso um processo de reorganização do capitalismo mundial, num contexto de pós-crise financeira em 2008. Uma crise que não é uma novidade, mas que lança algumas questões que precisam de uma reflexão mais detalhada. O capital por si só não gera capital, isso ficou demonstrado com a crise de 2008, a partir das hipotecas americanas. O que gera capital é a articulação da exploração da natureza com a exploração do trabalho humano.
O crescimento do lucro se dá com a expropriação das riquezas naturais como a água, os minérios, o petróleo, a biodiversidade, por meio da tomada dos territórios com base nas violações de direitos de quem vive neles e também da usurpação do conhecimento. Estas ações que atingem diretamente as populações tradicionais, originárias, e também das cidades, a exemplo do avanço da especulação do capital imobiliário e da força do racismo ambiental nas grandes cidades.
Para aumentar suas riquezas os capitalistas impõem o rebaixamento do valor da força de trabalho, a chamada mão de obra, com o aumento de desemprego e subempregos sem nenhuma garantia de direitos para a classe trabalhadora, sendo essa uma realidade que assume outros aspectos quando pensamos as trabalhadoras e trabalhadores negras/os, que estão à margem de qualquer seguridade social, vivendo em periferias dos grandes centros urbanos e sem políticas públicas que lhes garantam as mínimas condições de vida. Dentro ainda do atual cenário de reorganização geopolítica do capitalismo, há a questão dos novos padrões tecnológicos, que incidem diretamente no aumento de um trabalho cada vez mais precário e no aproveitamento do trabalho de consumidores.
Diante disso, precisamos retomar o passado recente para podermos destravar a criatividade para pensar o futuro. Precisamos dimensionar os fatos para pensarmos os caminhos de saída em curto, médio e a longo prazo, e discutir quais são os impactos que podemos esperar das estratégias deles?
Um fato recente que queremos situar é o golpe parlamentar, jurídico e midiático de 2016 contra a presidenta Dilma. Um golpe que foi liderado pelo bloco de forças neoliberais, patriarcais e racistas, e que está intrinsecamente articulado com a comunicação, o que amplia a sua dimensão cultural. Dentro deste bloco há um setor que vem crescendo em escala global, a extrema direita de caráter fascista, que acabou sendo vitoriosa nas eleições de 2018. Verifica-se também, como sustentação ao projeto golpista, a força das igrejas neopentecostais, da teologia da prosperidade e do fundamentalismo religioso. Esta força cultural, social e econômica reforça os aspectos patriarcais e racistas na forma de fazer política e de pensar a sociedade. Ela reestruturou o poder no país.
O grupo vitorioso nas eleições 2018 no Brasil se valeu de notícias falsas, manipulação de dados pessoais para criação de grupos de influência e esquemas de corrupção nos órgãos de justiça. Conseguiu tirar da disputa eleitoral o ex-presidente Lula, que estava em primeiro lugar nas pesquisas, condenando-o sem provas e o tornando um preso político. Isso está a cada dia mais comprovado pelo jornalismo comprometido com princípios éticos de responsabilidade na apuração dos fatos e de acordo com o interesse público. Não há mais como negar a manipulação e a fraude com que todo esse processo ocorreu. Não há legitimidade em eleições fraudadas, independente do tipo de fraude.
A eleição de Bolsonaro foi uma consequência que não era tão previsível para o conjunto dos movimentos sociais e do campo progressista, mas também não era para a direita e centro-direita que se juntaram a ele. Uma eleição que teve o apoio de um aparato tecnológico baseado diretamente na desinformação das pessoas sobre quem era Bolsonaro, sua forma de fazer política e com uma estratégia de disseminar milhares de mentiras com o objetivo de manipular a opinião pública. Registre-se ainda a influência da debilidade da direita e dos partidos de centro que aderiram a essa perspectiva, sobretudo com os ataques ao ex-presidente Lula e à esquerda em geral e a disseminação de ódio contra todos os dissidentes da ordem. Também influenciou no resultado eleitoral a baixa crença da sociedade na política. Muitos setores se encantaram com o velho discurso da “nova política”, e há, ainda, a política de setores da esquerda que tem pouca confiança e não apostam na mobilização social.
Contudo, merece realce muitos focos de resistência social impulsionados pela força dos movimentos sociais. A movimentação das pessoas que atenderam ao chamado feminista e foram às ruas nos atos do #EleNão, a partir do qual foi gerado o movimento vira-voto no final da campanha, mostrou a força das mulheres. O movimento feminista politizou a denúncia do avanço da extrema direita fascista no Brasil e a espalhou para outros lugares do mundo.
Antes das eleições 2018 estivemos na resistência ao golpe. Já temos uma tradição de atuação articulada nas várias edições da Marcha das Margaridas, na Marcha de Mulheres Negras, e levantamos nossas vozes nas ruas com a Primavera das Mulheres contra Cunha e o PL 5069 que pretendia ampliar a criminalização do aborto, no tempo em que setores da esquerda ainda flertavam com o fundamentalismo no Congresso Nacional.
Ainda no processo eleitoral, nós denunciamos as ameaças sofridas com a constante usurpação da autonomia sobre nossos corpos, quando nos levantamos contra a onda de maior criminalização do aborto, na audiência do STF, e fizemos o festival Pela Vida das Mulheres, em Brasília e em várias capitais. Já com Bolsonaro no Planalto, construímos o 8 de março com fortes e irreverentes manifestações, e seguimos atuantes em todas as lutas de trabalhadores e trabalhadoras contra o desmonte do Estado, na tentativa de construir uma greve geral e em defesa da educação. Nos somamos na luta contra a reforma da previdência, enfrentando o Congresso Nacional com o Tribunal de Mulheres, condenando o projeto e denunciando a incidência sobre nossas vidas. Nós estamos no dia a dia, acolhendo solidariamente a nós mesmas, mulheres pobres, periféricas, negras, arrimos de família, que veem os filhos assassinados pelo Estado ou os perdem para o tráfico e para as prisões. É desta força que vem a jornada de lutas desta semana.
Para sabermos o que teremos que enfrentar é preciso analisar quem está ganhando com essa atual conjuntura, ou seja, como anda a correlação de forças. A evidência se centra na extrema direita brasileira, que ganhou as brechas para sair dos porões e se manifestar a partir dos discursos de ódio e das mentiras que foram propagadas pela estratégia política do Bolsonaro. Apesar da vitória eleitoral e a ocupação do governo, essa extrema direita vem perdendo força com a resistência popular, as denúncias do The Intercept, e as perdas de apoio entre as forças que lhes deram sustentação, seja na mídia seja em alguns grupos econômicos. A direita tradicional e a centro-direita saíram sem grande expressão das eleições, apenas Rodrigo Maia, do Democratas, conseguiu ficar nos holofotes ao ser eleito presidente da Câmara dos Deputados. O PSDB foi fragorosamente derrotado e o que restou dele está sendo dominado por alguém fora de sua tradição: o prefeito de São Paulo.
Mas, infelizmente, todo este bloco acima tem acordo quanto ao projeto que eles estão impondo ao país. Os principais ganhos desse amplo bloco se expressam no conjunto de reformas que vêm sendo aprovadas no Legislativo. As reformas trabalhistas e da previdência e a própria aprovação do projeto de emenda constitucional que criou um teto para os gastos públicos, que congelou os investimentos do governo nos serviços, ainda durante o governo de Michel Temer. A EC da desigualdade, como foi chamada pelo conjunto dos movimentos sociais, foi a grande vitória deles que surgiu imediatamente do golpe de 2016. Eles seguem entregando o pré-sal e a Amazônia, impondo os transgênicos, revendo a política de mineração, e destruindo a educação pública, só pra citar alguns exemplos. É um projeto de país com economia reprimarizada e subordinada aos interesses das megacorporações americanas.
Nesse contexto e apesar de tudo, a esquerda continua no jogo. Apesar de todo antipetismo dos últimos anos, o candidato do PT à Presidência da República teve expressiva votação em 2018. Saímos da eleição com mandatos de esquerda fortes nos estados e no Congresso, especialmente as mandatas coletivas e a eleição de sujeitos políticos que sempre foram invisibilizados: indígenas, pessoas negras e transsexuais. Pela primeira vez temos no Congresso Nacional uma frente feminista antirracista com participação popular, que será lançada em 15 de agosto, no bojo da jornada de lutas desta semana. No campo da esquerda social, estamos tendo ações de resistência, principalmente contra os desmontes da educação pública, como veremos eclodir no próximo dia 13.
Mas, nos perguntamos: qual a estratégia a ser adotada pela esquerda para o enfrentamento à extrema direita fascista no governo? Podemos elencar a tática de resistência com mobilizações de massa que já tivemos desde 2015 e que se mantiveram em 2019, com paralisações convocadas pelas centrais sindicais, as multidões nas ruas em defesa da educação pública em 15 e 30 de maio, e as manifestações feministas. Infelizmente, a proposta de greve geral, que exige capacidade de fazê-la por tempo indeterminado, enfrenta o enfraquecimento do movimento sindical. Isso se dá em função de sua trajetória política recente, da maior precarização do trabalho e crescimento do desemprego, pelos ataques que se intensificam com a manipulação dos discursos no imaginário social, e pelo fim do imposto sindical e a desobrigação de pagamento da contribuição sindical.
Muita gente vislumbra a saída desta situação pela tática eleitoral pensando no pleito municipal de 2020. Para alguns ela se centra na construção de um programa que seja de alianças entre os movimentos sociais e a esquerda partidária. Para outros, a perspectiva é de alianças mais amplas, capazes de polarizar o centro e até a centro-direita para impor uma derrota à extrema direita no plano local. Todavia, para que haja eleições é necessário garantias mínimas de institucionalidade. E os últimos lances da conjuntura têm indicado riscos cada vez maiores.
Apesar de todos os dias sermos impactadas pela verborragia do presidente, ele está cada vez mais enfraquecido politicamente. Forças econômicas significativas têm retirado seu apoio em função dos prejuízos provocados pela política internacional deste governo. As comprovações reiteradas da manipulação midiática e dos serviços na internet para a política de desinformação, a corrupção no Ministério Público e no Judiciário, tem feito o presidente perder apoio nos setores médios da população. O desemprego e o abandono das políticas sociais têm gerado perda de credibilidade entre os setores populares. Há motivos mais que suficientes para um pedido de impeachment do presidente no Congresso Nacional e há quem queira fazê-lo.
Nós consideramos que o impeachment seria uma derrota importante neste projeto de poder em curso, todavia avaliamos que seria melhor uma ampla aliança para exigirmos a anulação das eleições fraudadas em 2018. Ação neste sentido está tramitando no TSE. Para as mulheres em luta o grito que mobiliza é ‘nem o Capitão, nem o Mourão, vamos pra rua exigindo eleição!’. Mas não temos como prever os desdobramentos do cenário atual. Embora o presidente pareça perder força, o projeto de poder em curso permanece forte e pode se radicalizar para uma quebra mais ampla da institucionalidade.
O movimento feminista entende, numa perspectiva de longo prazo, que os caminhos para o enfrentamento desta conjuntura se dão pela territorialização das lutas, pelas redes de solidariedade e cuidado entre as militantes e pela organização da segurança de suas ações. Construímos uma forma legitimamente diferente de fazer política, que mostra a capacidade organizativa das mulheres no cotidiano, nos desafiando a práticas políticas coletivas, horizontalizadas e articuladas entre nós e com outros movimentos sociais que queiram construir a resistência. A capacidade de dialogar com as diferenças e desigualdades existentes entre as mulheres, tem gerado alianças para enfrentar este momento difícil.
As alianças estarão em evidência nesta semana em Brasília, quando as ruas serão ocupadas por mulheres de diferentes partes do país em demonstração de capacidade organizativa e política das mulheres brasileiras. Desde o dia 9, o movimento de mulheres indígenas do Brasil está reunido em seu 1º Fórum Nacional. No dia 12 e no dia 13 elas saem em marcha para denunciar os desapossamentos e a violência do capital especulativo, do latifúndio e da indústria extrativista em seus territórios, da precarização dos sistemas públicos de saúde e educação, bem como denunciar o genocídio das populações originárias, como os recentes casos ocorridos no Amapá e em Manaus. Elas irão ao encontro das manifestações em defesa da educação e somarão forças.
Em aliança com os movimentos de mulheres rurais e os movimentos feministas, as mulheres indígenas se somarão ainda à Marcha das Margaridas, a maior ação de mulheres organizada do país e que a cada quatro anos deixa Brasília florida com a força das trabalhadoras do campo, das mulheres das florestas, dos igarapés, dos mares, dos quilombos, das pequenas cidades e das grandes metrópoles, todas juntas na defesa dos diferentes modos de viver. Será um grande momento de presença política da diversidade das mulheres frente ao governo Bolsonaro, em uma aliança especial em defesa dos territórios, da biodiversidade, da autonomia, da soberania, da luta por direitos e por igualdade. E essa união é o que se tem de mais simbólico e talvez o mais ameaçador para as forças que estão no poder agora. Ambas as Marchas serão significativas na confrontação ao poder estabelecido no Estado brasileiro desde o golpe. Para nós, é um orgulho ser lideradas por elas.
*Integrantes do SOS CORPO – Instituto Feminista para a Democracia