Recife lança a Escola Livre de Redução de Danos

Por Raíssa Ebrahim em 18/07/2019 Para a Marco Zero Conteúdo

O presidente Jair Bolsonaro (PSL), com pouca – ou nenhuma – base científica, sancionou, em junho, a nova Lei de Drogas do país,  de autoria do ministro da Cidadania, Osmar Terra. Entre as principais mudanças, estão ações mais rígidas no combate ao tráfico e à “guerra às drogas”, a possibilidade de internação involuntária de dependentes e o fortalecimento das comunidades terapêuticas, locais de tratamento geralmente isolados, de caráter religioso e focados na abstinência. Agora com mais financiamento, as comunidades passaram a fazer parte do Sistema Nacional de Políticas Públicas Sobre Drogas. Essas iniciativas vão na contramão da política pautada pela redução de danos, que, este ano, com muitas dificuldades, completa 30 anos no Brasil. Confira entrevista sobre o assunto no final desta matéria.

É diante desse cenário político, de carência de iniciativas efetivas e de verbas públicas contínuas, que um grupo de cinco pernambucanos e pernambucanas (conheça cada uma e cada um mais abaixo) lança, nesta quinta-feira (18), à noite, a Escola Livre de Redução de Danos, no Bairro do Recife. A redução de danos (ou simplesmente RD) é uma abordagem que visa minimizar danos sociais e à saúde numa perspectiva ampla de promoção de direitos individuais e sociais e não tem a ver apenas com o uso de drogas. Está ligada também à promoção da saúde, do bem-estar social, de políticas sociais e de justiça assim como à redução da vulnerabilidade e da violência.

Pernambuco é destaque em saúde mental e em redução de danos, tendo sido o primeiro estado do Brasil a efetivar uma Rede de Atenção Psicossocial (Raps), assim como os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), as residências terapêuticas, o modelo de consultório de rua e o Serviço de Atendimento Médico de Urgência (Samu). Foram experiências locais que se espalharam nacionalmente.

“A questão da redução de danos vem sendo estimulada nos últimos anos, mas, agora, é como se não se pudesse nem mais tocar no tema. Como se nada disso existisse dentro do SUS. E, na verdade, existe. Há recursos específicos para escolas e para formação, mas que não chegam ao destino e não são efetivados. Eles são fruto de iniciativas que nasceram a partir da política, mas não houve incentivo para efetivação. As coisas existem muito mais no papel”, explica Priscilla Gadelha, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de Pernambuco, redutora de danos do Movimento Brasileiro de Redução de Danos e articuladora da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa).

A Escola Livre de Redução de Danos é uma iniciativa coletiva da sociedade civil para viabilizar novas formas de pensar e construir o cuidado, com cinco grandes eixos: formação pedagógica de redutoras e redutores de danos; articulação e incidência política pela garantia de direitos; apoio na organização política de pessoas que usam drogas e profissionais da área; realização de eventos, simpósios e seminários que aprofundem o tema; e produção de pesquisa e conhecimentos sobre a temática.

A primeira atividade da escola será hoje, com o lançamento oficial e apresentação da iniciativa, aberta ao público. A segunda será o lançamento de um relatório da Main Line Health, sistema de saúde sem fins lucrativos que atende porções da Filadélfia e seus subúrbios. Esse estudo contém sete práticas de RD no mundo e experiências na América Latina e no Brasil, com destaque para Pernambuco. Algumas pessoas da Escola Livre de Redução de Danos participaram da pesquisa. Como parte da terceira ação, a ideia é conquistar parcerias e recursos para abrir turmas de formação mais regular. Haverá atividades gratuitas e, diante das necessidade e dos cenários que se apresentarem, a escola irá avaliar a possibilidade de cobranças.

Assista ao vídeo do Centro de Convivência É de Lei:

30 anos

A redução de danos tem origem no Reino Unido, quando, em 1926, a comissão de saúde autorizou médicos a prescreverem ópio a ex-combatentes de guerra que desenvolveram dependência de morfina. Já a primeira ação coletiva aconteceu em 1984 na Holanda, com o programa de troca de seringas em Amsterdã, uma reivindicação de pessoas que usavam drogas injetáveis e o alerta sobre os elevados índices de contaminação por hepatite do tipo B. No Brasil, a primeira experiência em RD data de 1989, com a distribuição de seringas estéreis em Santos (SP) com o objetivo de frear a disseminação do HIV/Aids.

Confira a cartilha “Fique suave”, de redução de danos e direitos de usuárias e usuários de drogas, construída pela Marcha da Maconha, que soma diversos coletivos, o mandato estadual coletivo das Juntas (Psol) e o mandato municipal de Ivan Moraes (Psol).

Quem faz a Escola Livre de Redução de Danos

Equipe da Escola Livre de Redução de Danos - da esq. para dir.: Arturo, Priscilla, Ingrid, Anamaria e Rafael (crédito: Ernesto de Carvalho)
Equipe da Escola Livre de Redução de Danos – da esq. para dir.: Arturo, Priscilla, Ingrid, Anamaria e Rafael (crédito: Ernesto de Carvalho)

Anamaria Carneiro: psicóloga, terapeuta comunitária e redutora de danos, compõe a Comissão de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, do Conselho Regional de Psicologia

Arturo Escobar: doutor em psicologia cognitiva, pesquisador e redutor de danos e presidente do Grupo AdoleScER

Ingrid Farias: redutora de danos, aceleradora social, educadora popular, licenciada em biologia e graduanda em serviço social, pesquisadora em gênero e drogas pela UFF e representante da Rede Latinoamericana e Caribenha de Pessoas que Usam Drogas e do Movimento Nacional de Redução de Danos

Priscilla Gadelha: psicóloga clínica, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de Pernambuco, redutora de danos do Movimento Brasileiro de Redução de Danos e articuladora da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas

Rafael West: psicólogo, redutor de danos, mestre em políticas públicas, pesquisador na UFPE e colaborador na Fiocruz.

Serviço
Lançamento da Escola Livre de Redução de Danos, no Recife
Quinta, 18 de julho
Às 18h
No Inciti – Rua do Bom Jesus, 191 – Recife Antigo
Aberto ao público

O governo Bolsonaro quer empurrar goela abaixo uma narrativa proibicionista e que criminaliza usuários e dependentes e defende que tratamento eficiente é aquele imposto na base da abstinência. Mas é preciso reforçar que a política de drogas não está ligada somente a questões de saúde e segurança. Ela tem reflexos na justiça e na fragilidade da vida de milhões de brasileiros, sobretudo os jovens negros que moram nas periferias.

A Marco Zero Conteúdo entrevistou, sobre esse e alguns outros, a baiana Luana Malheiro, da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa), secretaria executiva da Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas (PBPD), integrante do Movimento Brasileira da Redução de Danos e da Rede Latinoamericana e Caribenha de Pessoas que Usam Drogas (Lanpud). Ela é graduada em ciências sociais, especialista em saúde coletiva com ênfase em saúde mental, mestre em antropologia e doutorando em ciências sociais, tudo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Luana Malheiro (crédito: arquivo pessoal)

Luana Malheiro (crédito: arquivo pessoal)

Marco Zero: Quais os principais resultados que mostram a eficiência de uma política de drogas baseada na redução de danos?

Luana: A redução de danos nos apresenta a possibilidade de construção do processo de cuidado, partindo do princípio da autonomia da pessoa sobre o seu tratamento. Isso quer dizer que não existe um modelo único a ser aplicado em todos os casos. Cada pessoa possui as suas necessidades e sua relação singular com a droga. No cuidado baseado na redução de danos, a pessoa que usa drogas é ativa no processo de formulação do seu tratamento, e não mais um objeto passivo como em outras abordagens. A mudança promovida pela redução de danos utiliza como recurso terapêutico o território em que o sujeito vive e suas relações sociais, para que o sujeito reaprenda a ter uma relação com a droga dentro do seu contexto e de suas relações.

Um princípio básico da redução de danos é o acesso a direitos sociais:. Por vezes, o racismo e a exclusão social produzem situações de adoecimento psíquico que se acirram com a ausência de acesso a políticas sociais. A partir de um delicado estar junto, o redutor de danos vai acompanhando a pessoa que faz uso abusivo de drogas no seu trajeto por acesso a direitos, fazendo com que ocupe outro lugar social. Com a criminalização das drogas, há também a criminalização dos seus usuários e usuárias, que não acessam as redes das políticas sociais por medo de ser criminalizado. A ação de redução de danos atua no sentido de reconhecer as limitações e singularidades de cada pessoa auxiliando na tomada de autonomia e no acesso a direitos fundamentais.

O principal ganho trazido, no meu ponto de vista, não foi apenas inserir práticas de uso menos nocivas ou apenas inserir as necessidades das pessoas que usam drogas no âmbito da saúde pública. A redução de danos permite um caminho para que a pessoa que usa drogas se insira na luta política por direitos sociais e pelo direito à vida. É a partir desse processo simples, mas complexo, que a pessoa que usa drogas não pode ser considerada como parte do grande problema das drogas, mas como peça fundamental para a sua solução, tendo em vista que é essa pessoa que deve formular e participar de elaboração de políticas que afetam a sua vida. A pessoa que usa drogas sai, então, do lugar passivo, de “marionete da droga”, para o lugar ativo de um sujeito que pensa o seu tratamento a partir da tomada de poder na luta social.

O principal resultado da redução de danos é criar um método que permita o sujeito que tem um problema com drogas se cuidar a partir da sua trajetória, da sua comunidade, da sua identidade e de suas relações sociais. É uma tecnologia social de baixíssimo custo, se contrapõe a metodologias violentas que não levam em consideração a necessidade do sujeito.

Eu me considero um caso de sucesso da redução de danos. Aos 18 anos, passei por uma internação compulsória por uso esporádico de maconha. Passei cerca de três dias amarrada, fui espancada na clínica e, em todo momento que quis participar do tratamento, do meu processo de cuidado, era convencida de que, na verdade, não era eu quem estava falando, mas a droga que ainda fazia efeito na minha tomada de posição. Passei cerca de dois meses em um tratamento baseado na minha inferiorização, na humilhação e no uso compulsório de medicações que eu não poderia saber do que se tratava.

Saí impregnada de medicação e com medo de voltar a ter uma experiência tão violenta como foi essa internação. Foi quando conheci a redução de danos através do professor Edward MacRae, que me convidou a participar dessa luta a partir da incorporação da redução de danos na minha vida. A partir daí, do ano de 2005, iniciei a minha militância em defesa do cuidado em liberdade, do direito à vida e da redução de danos como alternativa viável a uma política de drogas como a brasileira, pautada na violência genocida que extermina pessoas negras e pobres e protege pessoas brancas.

Qual a avaliação que você faz sobre a atual política de drogas do governo Bolsonaro?

A política de drogas proposta pelo governo Bolsonaro obedece a lógica da agenda da morte. Se a gente junta o pacote anti-crime de Moro com a PL 37, de autoria do Osmar Terra, podemos perceber que existe um projeto político que utiliza da pauta da política de drogas para perseguir e criminalizar pessoas negras e pobres neste país. É uma política pautada no medo, no aumento de pena, no recolhimento compulsório de pessoas com problemas com drogas em instituições como comunidades terapêuticas.

O governo tem fortalecido as comunidades terapêuticas, a maioria em locais isolados, de caráter religioso e focadas na abstinência. Quais os perigos desse discurso e desse tipo de tratamento?

A PLC 37 concede ampla possibilidade de financiamento com verba pública a instituições como as comunidades terapêuticas [CTs]. O grande problema é que as CTs são instituições amplamente denunciadas em relatórios, tanto do Conselho Federal de Psicologia como do Mecanismo de Combate à Tortura. São instituições onde ocorrem graves violações de direitos. O grande problema desses espaços é a lógica do tratamento que segue um modelo único para todas as situações, além de prever a conversão religiosa, fazendo com que sejam espaços que dão seguimento à evangelização.

Se uma pessoa tem problemas com drogas, é lésbica e integrante de uma religião de matriz africana, nesse espaço a primeira coisa que acontece é uma violência com relação ao direito à identidade. Estratégias violentas de coerção buscam transformar essa pessoa em alguém moralmente aceito naquela comunidade violentando, assim, o direito à livre sexualidade e à liberdade religiosa.

No texto do PL 37, há a retirada do conceito de redução de danos, como já era de se esperar de um governo totalmente avesso a qualquer estratégia emancipatória.

A proposta das CTs são perigosas de diversas formas. Primeiro porque cumprem o projeto de expansão de religiões evangélicas e catequização de um povo, não há uma preocupação séria com a qualidade de vida do sujeito nem com a sua história. Há inúmeras denúncias de trabalho escravo, violência física, psicológica, etc. São equipamentos que têm violado direitos sociais básicos, logo não deveriam receber tanto investimento. Além disso, trabalham com a ideia da abstinência como porta de entrada para o tratamento, sem considerar que, por vezes, a pessoa que faz uso abusivo de drogas não consegue de maneira espontânea largar o uso de drogas totalmente para entrar em tratamento. A abstinência é um ideal muito rígido para se esperar de um sujeito que inicia o tratamento.

Não leva em consideração que um eventual problema com drogas esconde uma diversidade de situações difíceis de lidar. Na minha pesquisa de mestrado, acompanhei 20 mulheres negras, com trajetória de rua e que faziam uso abusivo de crack. Buscava entender como essas mulheres iniciaram o uso abusivo e como conseguiram controlá-lo ao longo de suas vidas. O resultado da pesquisa foi assustador: a violência racial e de gênero era a porta de entrada para o uso abusivo de crack. Dezoito das 20 mulheres foram para a rua porque foram violentadas por parentes próximos, fazendo com que passassem a estar em condição de rua muito cedo.

Uma vez na rua, as mulheres relatavam inúmeros casos de violência que foram responsáveis pela entrada no uso abusivo de crack: episódios de estupro coletivo de policiais, estupro de traficantes, retirada de filho já na maternidade por conta do uso. As mulheres relatavam de diversas formas que o crack aliviava a dor de perder um filho ou aliviava a humilhação de um estupro coletivo. O crack era então o que possibilitava que essas mulheres conseguissem viver em um contexto de morte. O abandono da droga nesses casos não é simples nem vem de uma hora para a outra.

Como é possível, no atual contexto, fortalecer a política de redução de danos no Brasil?

Precisamos manter acesa a chama da redução de danos. Tentar encontrar brechas para manter a redução de danos presente na vida das pessoas que usam drogas e também na institucionalidade. Precisamos unir as lutas e entender que a redução de danos é sobre a organização política de pessoas historicamente violentadas, é a tomada de poder da organização política nos territórios de guerra. Precisamos seguir mantendo presença nas cenas de uso, construindo política com as populações que têm sido acessadas pela redução de danos. Nesse sentido, a Escola Livre de RD do Recife é para nós um farol que nos guia nesse mar de desesperança. Enquanto houver usuários e usuárias de drogas organizados politicamente, haverá redução de danos, em nossas vidas e também na disputa do nosso projeto de sociedade.

Qual o papel da esquerda diante dessa nova política de drogas?

É crucial que a esquerda possa avaliar suas contribuições ao longo de todos esses anos para o campo da redução de danos. Tivemos a primeira experiência de redução de danos na cidade de Santos (SP) na prefeitura da petista Telma de Souza. Precisamos que a esquerda volte a ter a coragem de pautar a redução de danos. Na cidade de Salvador, contamos com parcerias importantes na Câmara Municipal que têm nos proporcionado construir um Projeto de Lei que formaliza o trabalho da redução de danos na cidade, bem como o cargo do redutor de danos. A vereadora Marta Rodrigues (PT) tem nos auxiliado a levar a pauta da RD para a câmara, esse é o papel de toda a esquerda: investir em linhas de fuga, propor projetos de lei que recriem a RD em todas as cidades e estados.

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