Por uma consciência feminista antirracista

A memória do 20 de novembro não apenas recorda a resistência e os desafios da luta do povo negro. Também coloca desafios para nós, feministas.

[Por Paula de Andrade*]

No Brasil, a sociedade é violentamente racista e estruturada em desigualdades. Mas quando alguém é acusado/a de racismo, sempre aparecem reações. No mínimo: “todos temos sangue negro e somos todos humanos, da raça humana”. Afirmar a luta antirracista feminista significa, antes de tudo, não calar frente a situações de violência, discriminação e desigualdade vividas pelo povo negro. Não calar e se somar às vozes de companheiras negras que sobrevivem diante da dor de perderem filhos jovens por serem negros, ou negros e homossexuais, ou negros e pobres, negros e – sempre – suspeitos. Suspeitos de qualquer coisa, suspeitos mesmo quando em nada aparentam sê-lo e, por isso mesmo, sendo ainda mais.

Fazer a luta antirracista feminista é retirar do silêncio as desigualdades entre nós, mulheres. Quem somos/são aquelas que, entre nós, são negras? Como vivemos neste país, o último a abolir legalmente a escravização de pessoas negras? Como este dado histórico se reflete em nossas condições de vida, nos lugares que vivemos? E como repercute no acesso a serviços de saúde e educação, nos trabalhos que realizamos, na renda que possuímos, na violência que sofremos em casa ou nas ruas? A memória do 20 de novembro não apenas recorda a resistência e os desafios da luta do povo negro. Também coloca desafios para nós, feministas.

A força de inúmeras mulheres negras, visíveis ou anônimas, está a serviço de milhares e milhares de outras ao longo da história. “Vem de longe.” Conhecê-las e reconhecê-las é fazer a luta antirracista, trazendo para o cotidiano exemplos de mulheres que inspiram coragem e poesia, saberes e maestrias não visibilizados. Afirmar essa luta significa difundir histórias que não se contam, falar de lugares que fizeram e fazem a história de quem enfrenta a barbárie nos pormenores de um cotidiano marcado pelo racismo: uma violência que dá as mulheres negras e homens negros em nosso país um não lugar. “Sobreviva, desde que à margem”.

A história das mulheres negras no Brasil e nos demais países do continente americano é uma história de resistência que começa desde que seus/suas ancestrais deixaram à força seus territórios. É uma história que se conecta à resistência de povos indígenas desse continente, que também foram e seguem sendo forçados a renunciar à própria cosmovisão. Forçados, mas resistindo às tentativas para que renunciem a vivências ancestrais e à forma como constroem seus saberes, como se vestiam ou como usam o cabelo. E hoje, como ontem, resistindo à violência que tenta extinguir práticas religiosas porque “seria hora de recolher os maracatus”, seria hora de parar a macumba, ainda que a ciência da tradição diga o contrário…

A luta das mulheres negras, sendo uma luta contra a opressão, como todas as lutas feitas por oprimidxs, é uma luta feita com muita dor e com muita coragem, pois é difícil soltar a voz e os cabelos, enfrentando a visão eurocêntrica que esmaga, desde o momento que uma menina negra adentra, p. ex., na primeira escola. De lá, até o seu último dia de vida, não apenas enfrentará o sexismo, mas todos os instrumentos do “embranquecer” e da objetificação, que é ainda mais violenta sobre cada mulher negra, em diferentes contextos.

Somando-nos a todas as pessoas que lutam para enfrentar essa cultura patriarcal e racista queremos saudar, no ano de 2015, a realização da Marcha das Mulheres Negras contra o racismo e pelo Bem-Viver. Saudar um ato político que significará a recuperação de memórias de lutas contra o racismo e o sexismo, lutas antirracistas que se entrecruzam, que propiciam o transcender das individualidades da trajetória de cada mulher negra, em um resgate coletivo de nossa formação histórica no espelho do presente, fortalecendo a gana de todas que estão na luta para nos sabermos, sabermos quem somos nós – as que entre nós são negras mulheres, e somos milhões no Brasil.

Queremos saudar um processo que propicia a vivência de uma identidade para uma luta libertária: a luta contra o racismo em nosso país. Um ato político que reinterpreta o passado e o presente. Reconstrói a memória e, assim, já se faz resistência, lançando um olhar sobre os tempos e o território cotidiano das vidas das mulheres negras, trazendo à luz o que tem sido silenciado, desmistificando o que foi naturalizado.
“A utopia que hoje perseguimos consiste em buscar um atalho entre uma negritude redutora da dimensão humana e a universalidade ocidental hegemônica que anula a diversidade. Ser negro sem ser somente negro, ser mulher sem ser somente mulher, ser mulher negra sem ser somente mulher negra. Alcançar a igualdade de direitos é converter-se em um ser humano pleno e cheio de possibilidades e oportunidades para além de sua condição de raça e de gênero. Esse é o sentido final dessa luta.” – Sueli Carneiro, Enegrecer o Feminismo 

 

(*) Paula de Andrade integra o coletivo político-profissional do SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia. Atua no Fórum de Mulheres de Pernambuco e na Articulação de Mulheres Brasileiras.

Publicado em 20/11/14

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