Frente aos processos de desestruturação política e social, como fica a democracia brasileira? A socióloga e ativista feminista Betânia Ávila traz abaixo uma reflexão, convidando todas a pensarmos juntas sobre Democracia e Resistência no Seminário que será promovido dias 23 e 24 no Sindicato dos Bancários.
Por Maria Betânia Ávila, Doutora em Sociologia, Pesquisadora do SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia, ativista da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) e da Articulação Feminista Marcosul (AFM).
Entre 1985, quando se encerra o mandato do último governo militar do período de ditadura e 2016, ano do Golpe Institucional contra a Presidenta Dilma Rousseff, foram decorridos trinta e um anos. O processo de democratização política que atravessou esse breve tempo da história, foi frágil, contraditório e sustentado politicamente em um modelo de democracia liberal.
Segundo Luís Felipe Miguel;
“…a disseminação do enquadramento liberal fez com que nossa própria transição política fosse avaliada tendo como único metro as instituições formais que dela emergiram. A convivência entre democracia e desigualdade aparecia como natural e pouco problemática…” (Miguel, Luís Felipe, 2018 p.1)
Na luta por transformação social, os movimentos sociais e outros setores da esquerda seguiam seus percursos políticos com esperança e determinação de construir, sempre novos processos de rupturas que levassem essa democratização, não sem contradições, para um horizonte de justiça social e aprofundamento da democracia.
O período dos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff, primeiro operário e primeira mulher, respectivamente, a serem eleito e eleita para Presidência da República no país, fortaleceu esta caminhada, uma vez que diminuíram, ainda que lentamente, os índices de pobreza, ainda que, sem as reformas estruturais necessárias para alterar os níveis da desigualdade social
Embora esses processos não tenham se dado na profundidade e extensão necessárias, as mudanças de melhoria na vida cotidiana apareciam nas paisagens urbanas e rurais, nas escolas públicas, nos serviços sociais, e em outros espaços de acesso público ao bem comum, evidenciando que algo mudava para melhor. Ao mesmo tempo que parecia emergir e se capilarizar expressões de uma subjetividade cidadã cada dia mais forte na população, notadamente naqueles setores submetidos aos graus mais profundos de desigualdade de raça, de classe e de gênero.
Neste período de 2002 a 2016, os espaços de diálogo e negociação entre movimentos sociais e governos se expandiram, em um processo que significava avanços e contenções, mas que ao mesmo tempo eram reivindicados como instâncias da democracia participava a serem aprofundados e repensados e reestruturados na direção de uma democratização do poder político. Por outro lado, a mercantilização sem limites dos processos eleitorais solapa, ainda mais, as possibilidades de democratização do poder via democracia representativa. Os movimentos sociais defendiam e defendem uma Reforma Política, não só dos processos eleitorais, mas da totalidade do sistema político que deve ser feita concomitante ao de democratização da comunicação.
O golpe em 2016 foi realizado por articuladores ocultos, traidores, homens violentos e gananciosos para destruir as políticas sociais que atendem as necessidades da vida cotidiana, eliminar os direitos trabalhistas que asseguram cidadania a milhões de mulheres e homens trabalhadoras/res, privatizar os bens públicos e comuns para auto favorecimento e, finalmente, mas não menos grave, para cumprir os desígnios do sistema financeiro e de outras corporações e entregar a riqueza do país aos capitalistas do Norte, que não cessaram, jamais, de extorquir os países do Sul. Neste contexto, pós 2016, o país saiu, no plano mundial, de uma posição de liderança e busca de soberania, juntamente com outros países do Sul, para uma posição de total subalternidade frente aos centros de poder da economia global.
Os interesses espúrios de uma classe dominante nacional encontram neste contexto neoliberal, um ambiente propicio para os processos de exploração e dominação que geram desigualdade e violência. Há mais do que evidências que o golpe político no Brasil em 2016 se encaixa perfeitamente na estratégia internacional de aprofundamento do neoliberalismo com sua agenda de austeridade perversa. Ressaltando a importância do Brasil para o aprofundamento deste projeto global na América Latina, o qual implica um processo político cada vez mais autoritário para garantir uma acumulação de riqueza cada vez maior através da super exploração do trabalho produtivo e reprodutivo e do desapossamento. O que se caracteriza no plano global dominado pelo neoliberalismo é que essa etapa da acumulação capitalista entra cada vez em contradição com a democracia política, mesmo dentro dos limites da democracia liberal, e sobretudo, evidentemente, nos países do Sul como parte da correlação de forças. No Brasil as forças políticas do neoliberalismo estão em estreita aliança com os setores das igrejas fundamentalistas, que avançam como setor econômico e como força política no cenário nacional.
A violência sexista, amplamente utilizada como uma arma contra a Presidenta Dilma Rousseff, mostrou, que misoginia é um elemento central para a disputa política baseada na truculência e na ausência de princípios éticos. A expressão violenta do ódio de classe, racista, homofóbico e sexista, tem ditado as regras das ações do atual e ilegítimo governo federal. A violência política e social dos poderes públicos e suas forças de repressão, não tem limites; censura, prisões, confrontos, violência nas ruas, intervenções militares, como armas para impedir o avanço das forças democráticas. A intervenção militar no Rio de Janeiro é a declaração mais absoluta da política de eliminação da cidadania da população trabalhadora, majoritariamente negra, que habita os espaços mais precários e vulneráveis das cidades. Segundo Guilherme Coutinho, “o golpe em curso, em que o Brasil se encontra, já permitiu a volta do trabalho escravo, acabou com os direitos históricos dos trabalhadores, tornou os pobres mais pobres e os ricos mais ricos” (COUTINHO, Guilherme, 2018).
Os meios de comunicação de massa, como corporações econômicas e parte do centro de poder econômico e político adotam como estratégia, normalizar a situação de excepcionalidade na qual está submerso o país. Através de seus programas de jornalismo e de entretenimento criminalizam os movimentos sociais e os partidos políticos da esquerda em seus processos de resistência, escodem e apagam a violência contra a população negra e trabalhadora, acionam o ódio e a violência contra a população LGBTI, incitam, autorizam e banalizam as formas de violências sexual e doméstica contra as mulheres e transformam os atos de protesto contra a perda de direitos, contra a privatização dos bens comuns, e contra os processos de desapossamento e genocídio que acontecem cotidianamente contra a população negra, campesina e indígena em estados de anomia para os quais sugerem a repressão e violência policial e militar como meio para o restabelecimento da ordem. Os dados recentes do mapa da violência do IPEA, nos autoriza, de fato, a usar o conceito de genocídio contra negros e sobretudos jovens negros, o que tem acontecido nesse incessante processo de assassinatos dessa população;
Uma das principais facetas da desigualdade racial no Brasil é a forte concentração de homicídios na população negra. Em 2016, por exemplo, a taxa de homicídios de negros foi duas vezes e meia superior à de não negros (16,0% contra 40,2%). Em um período de uma década, entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios de negros cresceu 23,1%. No mesmo período, a taxa entre os não negros teve uma redução de 6,8%. Cabe também comentar que a taxa de homicídios de mulheres negras foi 71% superior à de mulheres não negras. (IPEA E FBSP, 2018)
O poder executivo, o poder legislativo e o poder judiciário no Brasil, estão dominados, hoje, por agentes do grande capital financeiro e dos setores dos latifundiários, industriais e rentistas.
A luta por democracia e justiça social requer hoje, dos sujeitos coletivos engajados nessa luta, uma grande capacidade de resistência e de articulação. Lembrando que as leituras críticas sobre a realidade social são uma “arma” dessa luta, assim como os processos de formação política. Uma dimensão da ação contra hegemônica absolutamente importante na construção de estratégias políticas. A reflexão e o diálogo coletivos entre os sujeitos políticos que compõem os movimentos de transformação social, para produção de análises críticas e a difusão de valores democráticos são tarefas essenciais nesta caminhada.
O movimento feminista tem sido um sujeito político presente e fundamental neste processo de resistência, trazendo sua força de protesto e sua perspectiva crítica, nas análises dos processos políticos e da realidade social. Mobilizando, atuando em vários planos, dos pequenos espaços aos grandes momentos de protesto, esse movimento social segue com determinação e pluralidade sua movimentação pela transformação social e emancipação das mulheres que passa, incontornavelmente, pela conquista e pelo fortalecimento da democracia, não só como um sistema político, mas também como uma forma de organização da vida social que supere as relações de exploração e dominação de sexo, de raça e de classe
Referências Bibliográficas
COUTINHO, Guilherme, Revolução Brasileira: Por Lula o Morro vai descer. http://www.estudionoticias.com.br/revolucao-brasileira-por-lula-o-morro-vai-descer/ 03/08/2018 11.30h.
MIGUEL, Luís Felipe, O enterro da “democracia utópica”, Blog da Boitempo, 2018 https://jornalggn.com.br/noticia/o-enterro-da-%E2%80%9Cdemocracia-utopica%E2%80%9D-por-luis-felipe-miguel 04/08/2018 14.32h
IPEA E FBSP, Atlas da Violência, 2018, Rio de Janeiro, junho 2018