Nicarágua: entre a revolução e a ditadura [FolhaPE]

Por: Carla Batista* para a Folha de Pernambuco

Maria Teresa Blandón, integrante da organização La Corriente
Maria Teresa Blandón, integrante da organização La Corriente

Para refrescar um pouco a memória: Augusto César Sandino foi um homem do campo que na década de 20 do século passado iniciou a formação de um grupo revolucionário para lutar, entre outros propósitos, pela reforma agrária. Após alcançarem uma das suas importantes demandas, que foi a saída das tropas norte-americanas do país, esses guerrilheiros depuseram suas armas. Sofreram então um Golpe de militares que, liderados por Anastásio Somoza, assassinaram Sandino e instalaram uma ditadura no país.

Nos anos 60 foi criada a Frente Sandinista Nacional com o objetivo de por fim à ingerência externa no país e à ditadura Somozista, instaurando o socialismo na Nicarágua. Militantes de diversos países, inclusive brasileiros/as, se somaram à luta revolucionária que previa, entre outras transformações, a democratização do acesso à terra, à saúde e à educação. Era um projeto pelo qual valia a pena lutar.

Daniel Ortega, o atual presidente, foi um dos guerrilheiros desse movimento que em julho de 1979, após cerca de dois anos de guerra, conseguiu derrubar do poder a ditadura Somozista. Por seu papel no processo revolucionário, assumiu como líder a Junta do que se denominou “Governo de Reconstrução Nacional”.

Enquanto isso a oposição se organizou com o apoio da Igreja e dos EUA. A isso some as contradições inerentes ao processo de instaurar uma reconstrução nacional durante a crise econômica da década de 80, o que levou à derrota eleitoral dos Sandinistas em 1990, com a eleição do projeto neoliberal e conservador de Violeta Chamorro.

Para voltar ao governo em 2007, Ortega moderou o discurso e contou com o apoio declarado dos norte-americanos. Está no seu terceiro mandato, conquistado no final de 2016, numa eleição em que teve 72% dos votos, mas que contou também com cerca de 35% de abstenção e acusações de fraude. Nesses 11 anos de governo tem sido acusado de perseguir ferozmente críticos e opositores, de nepotismo e de se tornar cada vez mais parecido a Somoza, o antigo ditador. Se foi um dos líderes que ajudou a derrotar uma dinastia autoritária, está sendo acusado de ter iniciado outra quando lançou Rosario Murillo, sua esposa – da família de Sandino, o herói nacional – à vice-presidência do país.

O estopim para as atuais mobilizações foi a Reforma da Previdência, que previa a redução das aposentadorias e aumento das contribuições para empresas e trabalhadores/as. Imposta por decreto, o Governo teve que voltar atrás a partir da conflagração que o ato provocou. Mas o descontentamento e a tensão já vinham se manifestando a partir do incêndio em uma reserva dos índios Maiz – com mais de 5 mil hectares destruídos -, o que marcou o início de uma jornada de protestos que culminaram nas ações contra a imposição da Reforma da Previdência e que agora exigem também o fim do regime.

Pedi a uma das companheiras do movimento de mulheres daquele país para que ela nos apresentasse brevemente as principais críticas que as feministas nicaraguenses levantaram durante a última década ao governo de Daniel Ortega e Rosario Murillo. Ao que Maria Teresa Blandón (foto), integrante da organização La Corriente**, contestou:

“Eles (Ortega e Rosário) nunca poderiam ter abusado de sua enteada e ter encoberto esse crime”. Relembrando: Zoilamérica, filha de um casamento anterior de Rosário, acusou o padastro de tê-la violado em repetidas ocasiões. Rosário deu apoio ao marido, contra a filha. A ação não teve andamento na Justiça, já que a Juíza responsável afirmou que o caso estava prescrito, além de quê, Ortega gozava de imunidade por conta do cargo;

“Eles nunca deveriam ter feito um pacto com um dos mais corruptos governadores nicaraguenses, Arnoldo Alemán, para voltar à presidência. Assim como nunca deveriam ter encorajado, endossado, acobertado, promovido a corrupção de magistrados, deputados, ministros e prefeitos. Ortega nunca deveria ter corrompido o judiciário e o poder eleitoral, hoje sujeitos a seus interesses pessoais. Ele não deveria ter fraudado eleições – todas as fraudes documentadas – para ficar por três mandatos consecutivos na presidência, ter controle absoluto do Parlamento e da maioria dos Governos municipais”;

“Eles nunca poderiam ter concedido uma concessão a um milionário chinês***, comprometendo valiosos territórios e recursos naturais do país. Ele nunca deveria mentir para o povo da Nicarágua sobre um megaprojeto que não tinha chance de existir e que só foi utilizado para entregar a corporações transnacionais grandes áreas pertencentes a povos indígenas da costa do Caribe e, nunca deveria ter violado a autonomia dos governos indígenas da costa caribenha”

“Você nunca deve aprovar uma reforma tributária que beneficie apenas grandes empresários nacionais e estrangeiros, que foi o que ele fez”;

“Nunca deveria ter reformado a Lei Integral contra a Violência contra as Mulheres, a fim de reduzir as penas para os infratores, eliminar as delegacias de polícia voltadas ao atendimento das mulheres vítimas deste crime, além de ocultar informações a respeito”;

“Ele nunca deveria ter se aliado a religiosos fundamentalistas – ou usá-los – para negar os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e jovens. Nunca deveria ter aprovado um código de família que violasse os direitos de lésbicas, gays e transgêneros. Ele nunca deveria ter penalizado absolutamente o aborto, o que representa uma condenação para as mulheres pobres”. Acrescento que isso foi feito com a Reforma do Código Penal daquele país em 2007;

“Ele nunca deveria ter restringido a liberdade de expressão ameaçando jornalistas, fechando espaços e comprando quase todas as estações de televisão do país, hoje especializadas em espalhar mentiras oficiais”;

“Ele nunca deveria ter colocado todos os seus filhos e filhas como conselheiros do governo, ganhando grandes salários, sem que tivessem competência para exercer funções públicas”;

“Ele nunca deveria reprimir as mobilizações realizadas pelo movimento feminista, o movimento camponês e o movimento estudantil”;

Ele nunca deveria ter reprimido, como fez desde 18 de abril (de 2018), estudantes, jovens e colonos que protestam pacificamente. Até o momento, 70 jovens foram mortos (incluindo 4 crianças). Ele nunca deveria ter permitido que a polícia nacional agisse em conjunto com grupos paramilitares para semear um estado de terror”.

Como podemos ver, são muitos e concretos os motivos para oposição e manifestação.

*Carla Batista é historiadora, pesquisadora, educadora e feminista desde a década de 1990. Graduou-se em Licenciatura em História pela Universidade Federal de Pernambuco (1992) e fez mestrado em Estudos Interdisciplinares Sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pela Universidade Federal da Bahia (2012). Atuou profissionalmente na organização SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia (1993 a 2009), como assessora da Secretaria Estadual de Política para Mulheres do estado da Bahia (2013) e como instrutora do Conselho dos Direitos das Mulheres de Cachoeira do Sul/RS (2015). Como militante, integrou as coordenações do Fórum de Mulheres de Pernambuco, da Articulação de Mulheres Brasileiras e da Articulación Feminista Marcosur. Integrou também o Comitê Latino Americano e do Caribe de Defesa dos Direitos das Mulheres (Cladem/Brasil). Já publicou textos em veículos como Justificando, Correio da Bahia, O Povo (de Cachoeira do Sul).

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