Dona Ivone Lara – Uma jóia rara

Na foto, Dona Ivone Lara – que trabalhou como enfermeira com a Dra. Nise da Silveira – é homenageada pelos funcionários do Hospital Psiquiátrico Pedro II, onde se localiza o Museu de Imagens do Inconsciente.
– Por Daniela Name para Jornal GGN
“Dona Ivone Lara se formou em Assistência Social e trabalhava no Hospital Psiquiátrico Pedro II (hoje Hospital Nise da Silveira) quando, em 1946, doutora Nise criou a Seção de Terapia Ocupacional que Mavignier, também funcionário do hospital, transformaria em ateliê de arte.  Militante de esquerda, Nise havia sido presa em 1936 pela ditadura Vargas. Ficou dois anos presa e oito anos afastada do serviço médico. Quando voltou, em 1944, graças à anistia,  técnicas violentíssimas como o eletrochoque, a lobotomia e o coma induzido por insulina haviam se tornado práticas corriqueiras. A psiquiatra passou a se opor radicalmente a elas e optou por se dedicar ao “trabalho menor”da Terapia Ocupacional.
Se Nise foi a fortaleza que se opôs à violência médica, Ivone foi a menina negra e órfã do subúrbio que, criada em um internato na Tijuca, muito cedo teve seu talento musical descoberto pela professora Lucília Villa-Lobos, mulher do maestro Heitor Villa-Lobos. Enquanto Nise estava  na cadeia por se opor à ditadura Vargas, Ivone cantava nos coros regidos por Villa-Lobos no Estádio São Januário, em festas que, se tinham suas virtudes, serviam também como espetáculos um tanto fascistas para aclamar o ditador. 
Os caminhos dessas duas mulheres – Nise e Ivone – começaram a se encontrar em suas precocidades: se Ivone criou seus primeiros sambas-de-roda ainda menina, mesclando sua consistente formação escolar à tradição ancestral africana e rítmica de Madureira, Nise entrou na faculdade de medicina com 15 anos, e se formou aos 21, em uma turma da qual era a única mulher.
Em 1946, quando Nise e Mavignier implantaram o ateliê de pintura no Engenho de Dentro, Ivone tinha 25 anos e era compositora há mais de dez. Sua família foi um dos núcleos fundadores do bloco Prazer da Serrinha, e dele nasceria, em 1947, a escola de samba Império Serrano. Já casada, mãe de dois filhos,  ela trabalhava como enfermeira e assistente social para ajudar nas despesas domésticas. Teve papel fundamental na revolução empreendida no e pelo “coração da loucura” a que se refere o filme de Berliner.  
Nise acreditava que seus “clientes” com doenças psiquiátricas não deveriam ficar em leitos, a não ser para dormir, já que não estavam acometidos por problemas do corpo e sim da psique. Além da Terapia Ocupacional, buscava aproximar os “clientes” de suas famílias, para que o afeto germinado desses elos colaborassem também com a reintegração psíquica, minimizando a cisão provocada pela esquizofrenia.
Ivone percorreu quilômetros de estrada para os municípios do Rio e  estados vizinhos, localizando mães, pais, avós e tios que haviam abandonado seus familiares no hospital, acreditando que não havia mais nada a ser feito por eles – afinal, esse era o diagnóstico que ouviam dos próprios médicos.  Além disso,  colaborou para que a música também pudesse ser remédio para aquelas pessoas dadas como perdidas. 
Prima de um operário da fábrica de tecidos Nova América, hoje um shopping popular no Rio, Ivone conseguiu patrocínio da indústria para a compra de instrumentos musicais no Engenho de Dentro. Com isso, criou uma oficina de música, que passou a apoiar festas e eventos de socialização entre “clientes”, familiários e funcionários no hospital (o filme mostra uma festa junina). A oficina gerou um bloco de carnaval, o Loucura Suburbana, que até hoje desfila anualmente pelas ruas vizinhas ao hospital. Quem nunca foi, deveria incluir na agenda do próximo carnaval essa experiência transformadora.
Se hoje o Brasil é machista, não é difícil imaginar como era no fim dos anos 1940. Por isso é ainda mais bonito pensar no encontro entre Ivone e Nise como uma espécie de pororoca. Duas correntezas que precisaram criar ondas gigantes, mas que souberam também cantar baixinho “Espalhe amor por onde for /Quem sabe amar destrói a dor”, como ensina um dos mais lindos sambas de Ivone Lara.”

 

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