Por Carmen Silva*
Quando estourou a crise política no Brasil, no início de 2015, as manifestações de rua mobilizadas pela direita e pela esquerda, se confrontaram neste tempo histórico, mas não no mesmo espaço geográfico. Nós, do movimento feminista, discutíamos a saída e afirmamos ‘a saída é pela ponte’, no sentido de que precisávamos fazer pontes entre nós, dos movimentos de mulheres e de todos os movimentos sociais para encararmos juntas os desafios impostos pela onda conservadora, um tsunami contra os direitos tão duramente conquistados. Hoje, comemoramos a Marcha de Mulheres Negras, realizada em Brasília, a 18 de novembro de 2015, que enegreceu o Planalto Central e enfrentou a direita de plantão instalada, e armada. O confronto com o acampamento que conclama a volta da Ditadura Militar, ocorrido na chegada da Marcha em frente ao Congresso Nacional, é uma demonstração violenta do racismo e do sexismo que esta perspectiva política autoritária defende para o país, mas é também uma prova de que a revolta popular está sendo impulsionada por aquelas que estão no lugar de maior exploração e dominação na nossa estrutura social: as mulheres negras, sujeito político que, neste momento, representa a todos e todas que lutam por justiça e democracia.
O campo político dos movimentos sociais está esgarçado, mas isso não é obra do acaso. Incide nesta direção o viés da formação social brasileira e a tradição de transições políticas pelo alto, reacomodando a classe dominante. Também faz parte do contexto aquilo que a coalizão puxada pela esquerda conseguiu produzir neste período de governo e as escolhas políticas feitas pelos movimentos sociais, muito dos quais mais assopraram que bateram, no sentido de ter sido restrita a capacidade de análise crítica, de mobilização e pressão. O campo chega em 2015 gelatinoso e cheio de buracos, algumas ilhas ligadas umas às outras por fiapos, mas com baixa capacidade de gerar uma onda de movimentação social, apesar das inúmeras tentativas do primeiro semestre de 2015. Agora esta onda irresistível está no ar. É a primavera feminista mobilizada com a consignia ‘Fora Cunha!’, contra o PL ….. que quer retirar o direito ao aborto em casos de gravidez causada por estupro, mas que traz para as ruas todas as pautas engasgadas na garganta das mulheres, majoritariamente das mulheres negras de periferia, que são as principais vítimas da violência deste sistema. Contra o racismo e o sexismo, gritamos todas! E não vamos permitir que novas conciliações entre os poderosos sejam feitas em detrimento de nossas vidas. Não em nosso nome. Não vamos pagar a conta da crise que a classe dominante criou. Como gritamos na Marcha ‘A nossa luta é todo dia, mulheres negras não são mercadoria!’. Nossos direitos não são moeda de troca no jogo da crise.
‘Fora Cunha!’ não se refere só ao presidente da Câmara dos Deputados, mas também a todos aqueles que o seguem e que querem fazer deste país um território do fascismo, parte deles acampada em frente ao Congresso e parte do lado de dentro. O confronto nos fez sofrer. Queríamos terminar a Marcha com músicas, gritos, cores e danças afirmando a força de nossa cultura ancestral e de nossos sonhos de bem viver, mas queríamos fazer isso no centro físico do poder político. Não foi possível. O confronto demonstrou tudo que denunciamos nas nossas lutas cotidianas: os homens brancos, proprietários e de direita sabiam muito bem o que estavam fazendo. Não havia tresloucados. O que vimos e sofremos foi uma forma sintetizadora do poder que eles exercem sobre as nossas vidas no dia-a-dia. Mas nós provamos que existimos e resistimos. E os obrigamos a recuar. A Marcha de Mulheres Negras é razão de orgulho para o movimento feminista. 18 de novembro será, para sempre, em nossa memória, o dia em que as mulheres negras, com a força da energia com a qual tocamos a vida pra frente, expulsamos do cenário a direita fascista que quer se impor sobre a democracia brasileira, ainda que falte muito ainda para que esta democracia nos represente. Este ano, com a Marcha das Margaridas, a Primavera Feminista e a Marcha das Mulheres Negras, iluminamos a cena do campo político dos movimentos sociais e estamos ajudando a construir as pontes para o seu fortalecimento.
*Carmen Silva é educadora do SOS Corpo, integra o Fórum de Mulheres de Pernambuco e a Articulação de Mulheres Brasileiras. Atualmente é doutoranda em Sociologia pela UFPE.