Faz 10 anos.
Vinte sete dias de acampamento/ocupação num terreno público que tinha sido vendido a preço de banana para grandes construtoras que propunham um mondrongo ao que davam o nome de Novo Recife. Ameaça de demolição dos galpões antigos no pátio ferroviário, ameaça de construção de uma dúzia de torres de luxo no coração do centro do Recife, à beira da maré, no Cais José Estelita, no ponto focal entre Brasília Teimosa, Coque, Coelhos e São José. Dez hectares cuja vocação era a diversidade: moradia, comércio, parque, conexões viárias para todos os tipos de transporte, todos esses usos, qualquer um deles e outros ainda, mas sempre de caráter popular. Uma oportunidade de costura do urbano que nunca poderia ser desperdiçada com um condomínio elitizado. Um projeto caro e pobre. Um imenso desperdício.
Uma escola. Uma arena. Um ponto de convergência onde se debateu a cidade lutando por ela, fazendo ocupação – do terreno, da internet, da mídia e dos espaços e ferramentas institucionais da democracia. Foram muitos pedaços de Recife que se cruzaram no Cais com disposição para o contato, para o debate e para a luta, com a coragem de conviver na diferença e enfrentar sua dificuldade. Unificação contra um inimigo comum: a exploração predatória da cidade pelo capital imobiliário e seu apadrinhamento pelo poder público. Coragem para combater outros grandes inimigos de dentro para fora: o racismo, o machismo, a misoginia, a LGBTQIA+fobia, o classismo. Uma experiência em que a demanda por participação popular nas decisões sobre os rumos da cidade ganhou materialidade, não como conceito ou ideia, mas como demanda concreta, reconhecida como um fim e um meio essencial para uma cidade melhor e mais justa.
A experiência do Estelita permeia muitas lutas do Recife de 2024. Hoje. “Sins” e “nãos” do Estelita formaram muita gente que está na linha de frente agora e modificaram radicalmente o percurso de muita gente também. Por outro lado, as construtoras, agências de publicidade, imprensa, Prefeitura e Governo continuam os mesmo em essência, mas precisaram incorporar discursos diferentes, assim como algumas ações, ainda que de forma limitada e hipócrita. Será que o projeto do Aeroclube, por exemplo, teria de partida uma cota de unidades de habitação social sem o precedente o Estelita?
Sempre houve luta por moradia em Recife. Veemente. O que o Cais trouxe de novo então? Uma parte dessa contribuição que reverbera até hoje, foi a nitidez sobre a natureza sistêmica da cidade, que obriga a ver a conexão entre os problemas (e também entre as possibilidades de luta e de vida, diga-se). Especialmente esta: que a corda do racismo ambiental que arrebenta do lado mais fraco a cada enchente, enxurrada, deslizamento ou despejo, a cada baculejo, na demora do ônibus, na distribuição dos parques, cinemas e teatros e etc. não começa na informalidade das ocupações de risco, ou mesmo na pobreza em si. As pontas que endereçam as consequências desse modelo de cidade aos mais vulneráveis estão amarradas ao processo de feitura da cidade formal, na medida em que ele destina os melhores terrenos para a exploração imobiliária conforme o projeto de negócio dos donos de terra e construtores, e não conforme o interesse público, que, para ser disputado, construído e reconhecido, precisa, mais uma vez, de radical participação popular nos processos de decisão. O oposto do que acontece: gabinetes abertos para alguns grupos, bomba na cara e polícia para outros. Reproduzindo a velha capitania hereditária.
Estamos inevitavelmente ancorados num tempo cronológico. Uma década desde 2014, quando na madrugada do 21 de maio se deu o início a demolição ilegal dos galpões do Cais, o que desencadeou o começo da ocupação. Olhar a partir do presente faz a gente enxergar de outras perspectivas e nos faz pensar o que de fato ainda precisa ser falado sobre o assunto. Falar aos nossos, que se mantém no front dessa batalha. Falar aos que vieram depois: jovens que não experienciaram a ebulição de uma década atrás e que são continuadores desse caminho. Falar aos que estão sofrendo violações hoje, para que saibam que não estão sozinhos ou esquecidos. Falar também às empreiteiras e construtoras, que nós ainda estamos aqui, multiplicados. Falar aos gestores que o direito à cidade é mais importante do que os gastos com propaganda e campanha antecipada.
A memória é algo muito poderoso e a História é feita de disputas narrativas – e muitas vezes do apagamento das lutas. O MOE tem o dever de contar para o ao Recife, uma história de multidão, de articulação em torno de uma causa. Contar um relato de insurgência de uma cultura política que ainda hoje reverbera na cidade. E cobrar que esse legado seja reconhecido com a denominação de “Parque da Resistência Leonardo Cisneiros” da futura área pública a ser construída no Cais.
Desde que o MOE nasceu, ele sempre foi mais do que a discussão pelo futuro do Cais José Estelita. Foi um mirante para o entendimento deste mundo que, ao contrário do que se quis, não foi demolido junto com a demolição dos galpões. E aí é que o tempo cronológico dos dez anos, definitivamente se bagunça.
Foi no Estelita que a gente conseguiu entender algo fundamental, que é sintetizada pela principal faixa do movimento. “A cidade é nossa, ocupe-a”. Compreender a cidade enquanto nossa, significa entendê-la enquanto bem comum, coletivo. Ocupá-la significa percebê-la enquanto lugar de disputa, de participação, de construção. Se o Estelita ainda comunica algo para os dias de hoje é, sobretudo, o sentimento de que a cidade não é alto exterior a nós que vivemos nela.
Mas, no Estelita, pudemos ver também a nossa força; nossa alegria de sonhar coletivamente; de colocar em prática uma forma solidária e amorosa de viver. No Estelita pudemos nos reconhecer enquanto sujeitos que pensam e constroem uma cidade e um mundo desejável, sonhável. Pudemos sentir a intensidade da potência dos afetos vibrando em noites insones à luz da lua e também o conforto do companheirismo em horas de muito medo. Vimos “um poder comum, sem assinatura e passageiramente invulnerável”, como disse o Comitê Invisível. “Invulnerável porque a alegria que emanava de cada momento, de cada gesto, de cada encontro jamais poderá ser retirada de nós”.
Relembrar! Persistir!
É importante pra gente celebrar esse ano, entendendo o Estelita como metáfora para pensar a cidade hoje. E por isso estamos construindo uma programação espalhada pelo Recife. Que faça daquele Estelita, que foi uma força centrípeta e agregadora, uma força espalhada pela cidade e que fortaleça as lutas do agora.
De 21 de maio a 17 de junho deste ano, assim como em 2014, ocuparemos o Cais e a cidade. Debates, vivências, trocas e eventos culturais, organizando e inventariando a memória.
Queremos reaglutinar quem foi atravessado pelo Estelita, aproximar os sujeitos de luta pós-Estelita e, a partir do processo de rememoração, alimentar uma energia de luta. Relembrar e refletir conjuntamente sobre essa experiência histórica recente com a pluralidade dos novos sujeitos que estão em luta é uma oportunidade de criar um novo espaço de faísca de resistência.
É preciso pensar o estelita 10 anos depois, evocando a ideia de um Cais possível. Cais enquanto nascente de sonhos e possibilidades. Um Outro Cais é possível. E independentemente do que eles façam, um outro Cais sempre será possível.
“Eles são muitos
Mas não sabem voar”
Grupos que integram a construção do Ocupe Estelita + 10:
- Aliança Palestina Recife
- Associação Metropolitana dos Ciclistas do Recife – AMECICLO
- BrCidades
- Caranguejo Uçá
- Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social – CENDHEC
- Centro Popular de Direitos Humanos – CPDH
- Cine Rua PE
- Coordenação do Curso de Cinema da UFPE
- Cooperativa Arquitetura, Urbanismo e Sociedade – CAUS
- Coque Vive
- Coquevídeo
- Federação de Órgãos de Assistência Social e Educacional – FASE
- Fórum Suape
- Greenpeace
- Grupo Direitos Urbanos – DU
- Habitat para Humanidade Brasil
- Imagens Contemporâneas – UFPE
- Intercena – UFPE
- Instituto de Arquitetos do Brasil/Departamento Pernambuco IAB.PE
- Jane’s Walk Recife
- Kapiwara
- Laboratório de Pesquisa de Imagens e Sons – LAPIS/UFPE
- Luz de Angola
- Mandato Vereador Ivan Moraes
- Movimento das Trabalhadoras e dos Trabalhadores Sem Teto – MTST
- Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis – MABI
- Palaffit
- Pão e Tinta
- Ponto de Cultura Espaço Livre do Coque
- SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia
- Troça Carnavalesca Mista Público Privada Empatando Tua Vista