Março de #lutafeminista: 2024, as eleições e a democracia

2024 é um ano muito significativo para a democracia no Brasil e no mundo. Aqui teremos as eleições municipais. Será a prova dos nove para sabermos até onde estamos conseguindo empurrar a extrema direita bolsonarista.

| Artigo de Carmen Silva* | Edição e Revisão: Fran Ribeiro |

No mundo, 49% da população global vive em países que passaram por eleições em 2024, e a extrema direita tem apresentado riscos em algumas bem importantes, a exemplo dos EUA e do parlamento europeu. Mas afinal, quais os desafios que a democracia está enfrentando neste contexto? Tomando apenas a questão eleitoral, marco da democracia liberal, os desafios já são enormes, mas vamos alargar mais um pouco o olhar para sentir o momento que estamos vivendo.

O momento do mundo coloca muitas exigências para quem quer fazer dele um lugar bom para se viver, para quem luta pelo que é justo e gera possibilidade para a vida em comum. As desigualdades socioeconômicas, de sexo-gênero, de raça e etnia só crescem cada vez mais. Tudo piora nestes tempos de crise. São muitas crises, mas quero dar ênfase à catástrofe ambiental que estamos vivendo e que coloca fortes riscos, se não barrada, para a continuidade da vida no planeta.

O capitalismo não tem fronteiras. Hoje a perspectiva é de mercantilização de tudo: o que está embaixo da terra, com a mineração e o petróleo; o que está em cima da terra com a devastação das florestas e a imposição da alimentação com carne e transgênicos, ambos predatórios da saúde humana e do ambiente; o que está no ar, com o mercado de carbono e a energia eólica degradando a vida ao redor; e o que está em nossos corpos, nossos conhecimentos sobre a biodiversidade, os dados sobre nossa vida interior, a nossa capacidade de trabalho levada à exaustão. Esses são apenas exemplos porque tudo é passível de ser transformado em mercadoria.

Vivemos sob domínio de um sistema hidra, esse monstro de três cabeças – capitalismo, patriarcado e racismo – do qual ainda não conseguimos cortar plenamente nenhuma, tiramos parte delas em alguns períodos e elas se reconstroem permanentemente. Um sistema que pode seguir dando lucro para os homens brancos e proprietários de grandes fortunas, o 1% mais rico, e dispensado inúmeras vidas humanas, as racializadas e feminilizadas, não mais necessárias para isso.

Este sistema não é uma abstração, ele se efetiva de forma unificada sobre nossas vidas cotidianas e nossos corpos tanto quando controla a reprodução, impede o direito ao aborto e tenta conter as sexualidades, como quando produz a desestabilização do trabalho e da identidade de trabalhador/a, jogando as pessoas para a informalidade, renomeada como empreendedorismo, ou para o desalento do desemprego, que é mais desesperador.

É este sistema que sequestra a democracia com as campanhas de desinformação e ameaças militares, que impõe o fundamentalismo religioso sobre o Estado, que leva o Brasil a bater recorde mundial de assassinato de pessoas trans e promove o genocídio da juventude negra e dos povos originários.

E nos lembremos, em tempos de crise econômica sistêmica, os ricos defensores da democracia liberal já entregaram os anéis para as ditaduras militares e para o fascismo. No Brasil, sustentaram o bolsonarismo. Isso desafia os movimentos sociais que lutam por direitos e os governos que intencionam implementá-los. E só com o fortalecimento da democracia poderemos gerar as condições de enfrentá-lo. As eleições são apenas uma parte deste processo, mas, sem dúvida, seus resultados podem ter forte impacto para a continuidade desta luta.

A extrema direita cresce diante da incapacidade da esquerda de dar resposta às grandes mobilizações populares ocorridas no mundo todo há uma década e ao enfrentamento dos problemas ordinários de sobrevivência no cotidiano das pessoas em todos os lugares.

Do ponto de vista internacional, a reorganização das relações entre países e a submissão dos estados-nação à força das corporações também nos desafia. Os conflitos no mundo estão abandonando a política e se conformando, cada vez mais, como guerras. O sistema ONU perdeu força e nova concertação mundial é necessária para tentar manter vivo o planeta. A política externa do governo Lula tem indicado alguns caminhos possíveis, tanto no campo econômico como político. A ampliação dos BRICS aponta maiores possibilidades de enfrentamento do império norteamericano, embora não pareça ter base necessariamente na justiça socioambiental e na democracia econômica. O enfrentamento ao estado genocida de Israel, nestes dias, é um marco político bem importante para o governo Lula incidir nesta nova concertação mundial.

Os movimentos sociais e a sociedade civil têm feito inúmeras tentativas de incidir mundialmente no enfrentamento destes desafios desde o processo Fórum Social Mundial, as assembleias mundiais, as Cúpulas dos Povos em paralelo às Cúpulas dos Presidentes, as manifestações, as ações de desobediência civil, todas as incidências sobre as agendas internacionais das cúpulas presidenciais e dos vários organismos da ONU. Mas tudo ainda é bem pouco diante do tamanho dos desafios.

A democracia pode gerar condições de enfrentamento da crise atual do sistema, é verdade. Mas ela não pode ser vista apenas como exercício de direitos civis e políticos e realização de eleições. Mantendo-se somente como regras ritualizadas ela já perdeu legitimidade. A democracia precisa enfrentar o problema de sub-representação das mulheres, do povo preto e indígena, das juventudes, da comunidade LGBTQIAP+ e da classe que vive do trabalho. Sem uma mudança radical no sistema eleitoral e partidário não há saída para a crise. A política de esquerda precisa ser capaz de enfrentar a crise de representação dos partidos.

Além disso, precisamos de um conceito de democracia, teórico e de aplicação prática, que vá além do Estado e do sistema político, que sim, projete os direitos na perspectiva de sua indivisibilidade, universalidade e interdependência, mas que também contemple a democracia econômica e gere condições de possibilidade de democratização da vida social e da cultura política. Conceito que só pode ser construído com o aprofundamento da reflexão e da luta política na sociedade.

Para o feminismo, a democracia é um devir. Não está dada com eleições. Nem mesmo com a política de participação social. Não obstante ambas sejam importantes e precisem ser mais democratizadas. Para nós a democracia é uma construção permanente, no Estado e na sociedade, nas ruas e nas casas, é ela que gera possibilidades de enfrentarmos o sistema e de disputarmos o que é o justo, o que pode ser o comum, e em que condições queremos viver a vida. Este segue sendo nosso principal desafio.

* Carmen Silva é socióloga, educadora da equipe do SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia e militante do Fórum de Mulheres de Pernambuco / Articulação de Mulheres Brasileiras.

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Next Post

CARTA DE REPÚDIO: Justiça que mantém a Vale impune por Brumadinho nega direito de sepultamento a cacique Kamakã

qui mar 7 , 2024
Conjunto de organizações manifestam sua profunda indignação com a decisão da Justiça Federal da 6ª Região, de Belo Horizonte, em favor da Empresa Vale S/A, que proíbe a Retomada Kamakã Mongoió em Brumadinho (Córrego Areias), de semear o corpo do Cacique Merong Kamakã Mongoió, no território sagrado da comunidade.