Futebol de Mulheres: resistência, luta e ato político

No último dia 02 de agosto, na sede do SOS Corpo, a Ação Cultural Feminista “Há espaço para as mulheres no futebol?”, reuniu ativistas do futebol, jogadoras e torcedoras para discutir o cenário da modalidade no Brasil e em Pernambuco.

Ação Cultural Feminista Há espaço para as mulheres no futebol?, aconteceu na sede do SOS Corpo. Foto: Maduh Carvalho.

| Texto: Fran Ribeiro | Fotos: Maduh Carvalho |

Cabeças de boneca, latinhas de refrigerante, meias enroladas, bola de sacola. Ser menina e gostar de futebol é desafiar o silenciamento, a negação, o julgamento. É enfrentar o racismo, a misoginia e a lesbofobia. A desconfiança, a falta de respeito, de apoio às vezes da própria família, de amizades, do estado e de iniciativas privadas. 

Dos campinhos de várzea, de chão batido, no asfalto, na quadra esburacada daquela pracinha do bairro, abandonada pela prefeitura. Muitas vezes descalças ou com tênis emprestados. Lá ela não tem medo de dividida, de ficar com bolha nos pés, de empurrar e ser empurrada, de brigar quando um menino tenta diminuí-la, de apanhar quando muitos deles se juntam para oprimi-la por não quererem reconhecer que ela é melhor do que tudinho junto. 

Pode ter sido narrado aqui, de maneira breve, situações que muitas mulheres e meninas tenham vivido ao longo da infância, quando insistiam em nos dar bonecas, ursinhos ou qualquer outro brinquedo que fosse “de menina”, porque gostar de futebol não é culturalmente algo permitido para nós. Cultura e Natureza aqui, mais uma vez, usados como argumentos de um patriarcado racista para tentar definir o que é o lugar das mulheres e o lugar dos homens, numa sociedade ainda tão conservadora. 

O futebol nasce sob domínio patriarcal, associado à masculinidade e à branquitude. É lugar de homem e de homem branco e a história de diversos clubes de futebol no país e no mundo nascem sob essa influência. Imagina só ser menina preta e pobre e querer jogar futebol?

Da criminalização à visibilidade do futebol de mulheres, da falta de políticas públicas e até do desinvestimento privado em incentivar o avanço da modalidade, da violência machista nos estádios que ainda afasta muitas torcedoras das arquibancadas, passando pela misoginia que as mulheres que comunicam sobre o futebol vivenciam ainda no exercício da profissão, da LGBTQIA+fobia que ainda ronda o esporte como um todo. Esses foram alguns elementos que a Ação Cultural Feminista Há espaço para as mulheres no futebol?, realizado no dia 02 de agosto na sede do SOS Corpo, tentou responder. 

Da esquerda para a direita: Rafaela Nicácio (Aurora FC); Larissa Brainer (Ativista de futebol); Fran Ribeiro (SOS Corpo); Luiza Lira (Movimento Coralinas); e Luiza Carolina (jogadora de futebol amador). Foto: Maduh Carvalho.

Para a missão de pensar juntas e refletir sobre a cultura que envolve o universo do futebol das mulheres, as desigualdades e os processos de resistência, convidamos para o papo Larissa Brainer, jornalista e ativista do futebol de mulheres; Luiza Lira, do Movimento Coralinas, Coletivo Feminista de torcedoras do Santa Cruz, Rafaela Inácio, do Aurora Futebol Clube e Luiza Carolina, assessora parlamentar e jogadora de futebol amador. A mediação do debate foi da jornalista e comunicadora popular do SOS Corpo, Fran Ribeiro. 

As convidadas compartilharam como foi a aproximação de cada um com o universo do futebol, algumas desde crianças, quando jogavam em quadras e campinhos de várzea, dividindo bolas e enfrentando os meninos, ou quando suas primeiras lembranças são das idas aos estádios de futebol com pais e familiares ou ainda, já adultas, quando se depararam com a potência do futebol como meio de fortalecimento de comunidades. O comum das experiências foi o entendimento de que o que as milhares de meninas e mulheres fazem no futebol cotidianamente, são processos revolucionários. 

Se o desenvolvimento do futebol de mulheres no Brasil passa pela proibição da prática de maneira institucional – o governo de Getúlio Vargas aprovou um projeto de lei que estabeleceu a proibição com justificativas biológicas-, criminalização essa que perdurou por 30 anos, no dia a dia, as mulheres produziam resistência e ousadia ao desafiar, em plena ditadura, a misoginia, o racismo e a lesbofobia que rondam até hoje a cultura do esporte no país. 

Larissa Brainer compartilhou análises sobre a relação entre futebol e feminismo. Foto: Maduh Carvalho.

Em 1941, durante o Estado Novo, Getúlio Vargas criou uma lei federal que criminalizou a prática de futebol por mulheres, com a justificativa de que as nossas “condições biológicas” não eram compatíveis para jogarmos. Mas segundo a historiadora Aira Bonfim, na pesquisa que rendeu o livro “Futebol Feminino no Brasil: entre festas, circos e subúrbios, uma história social (1915-1941)”, lançado no mês de julho deste ano, confirma em suas investigações que desde 1910 as mulheres já jogavam futebol e muito, ganhando destaque e ocupando espaço que até então era desses homens brancos da elite brasileira. E que a proibição se deu pelo fato de serem mulheres, mas também pela maioria serem mulheres negras, jovens e de periferias das grandes cidades. Vale ressaltar que esse decreto-lei de 1941 durou até 1979 e que na época do Estado Novo a regulamentação do esporte era gerido pelo Ministério da Educação e o da Saúde. Proibir a prática de futebol pelas mulheres é também uma dimensão de negação de sonhos.

Criminalização, controle dos corpos e destinos das mulheres, das nossas formas de pensar e agir, são estratégias do patriarcado que refletem também no cotidiano do esporte, assim como em outras dimensões da vida das mulheres. 

A Copa do Mundo é apenas a ponta de um contexto que é muito maior. É desde a criação de políticas públicas de incentivo ao esporte, de aparelhos e infraestrutura para a prática de maneira digna, de espaços seguros para as meninas praticarem e aprenderem a jogar, para treinar técnica, mas também desenvolver a força física. E é nesse contexto que dá para entender as desigualdades entre a modalidade feminina e masculina. Sejam pelas estruturas dos clubes, sejam as leis de incentivos públicas, os patrocínios das grandes marcas, a disparidade salarial, valores das premiações e até mesmo a visibilidade. De acordo com dados da própria CBF, em 2019, 4,4% do total de jogadores profissionais do país eram mulheres. Em número brutos, 598 jogadoras e 12.992 jogadores. A disparidade se estende para outras funções. O país tem 1672 homens treinadores e 57 mulheres no mesmo cargo. Já na arbitragem as mulheres são 123 árbitras e 536 são homens. 

Rafaela Nicácio, do Aurora FC, contou sobre as dificuldades de praticar futebol na cidade, sobretudo disputar espaços com homens que não querem a presença de times femininos nas quadras. Foto: Maduh Carvalho.

Diante desse cenário que muitas ativistas e pesquisadoras do futebol de mulheres afirmam que defender o futebol feminino no Brasil é um ato político e essa perspectiva aproxima o futebol do feminismo, mesmo que o movimento feminista não tenha abraçado – ainda – o futebol.

“A gente precisa entender que não é uma questão individual, é uma questão de estrutura e para mudar a estrutura a gente precisa de um movimento político e é aí que o feminismo entra. É curioso pensar que há feministas no futebol, mas não há feminismo no futebol ainda. Porque que o movimento feminista não se aproxima mais, de modo a pensar o futebol como esse espaço de atuação política”, destacou Larissa Brainer. 

Se as mulheres estavam lutando em diferentes dimensões da vida cotidiana para causar rupturas, o resultado é que elas não vão romper apenas uma perspectiva. “Minha perna no feminismo é através do futebol”, salientou Rafaela Nicácio. 

Luiza Lira, do Movimento Coralinas, compartilhou histórias de enfrentamento que o Coletivo de Mulheres do Santa Cruz enfrentam para garantir o direito de estar nos estádios para torcer pelo seu time. Foto: Maduh Carvalho.

As principais conquistas do futebol se expuseram justamente em consonância aos momentos de agitação e insurgência das mulheres fora de campo e que reverberam para dentro dele também. Se hoje as jogadoras usam seus lugares políticos para reivindicar investimentos na modalidade, visibilidade, equiparação salarial, para denunciar a precarização da profissão, são resultados sim da força que o feminismo tem enquanto um projeto de sociedade que quer mudar as estruturas patriarcal, racista e capitalista que imperam no mundo do futebol, mas também em outras dimensões das relações sociais. 

“O fato de gostar futebol me fez feminista mesmo antes de saber o que era feminismo”, confirmou Luiza Lira.

Se lá na criminalização por Vargas em 1941, o argumento de proibição foi que as mulheres não têm porte ou “condições biológicas” para serem jogadoras, a atualidade mostra o contrário. Mais investimentos da base até o profissional podem sim formar atletas de alto rendimento. É importante destacar isso, pois um dos argumentos dos machistas de plantão que se acham os detentores do conhecimento sobre futebol, para desqualificar a presença das mulheres, é apelar para a lesbofobia e para o racismo. E por muito tempo, o mercado esportivo queria ditar um padrão de feminilidade para as jogadoras. Logo, ser sapatão e ser jogadora de futebol, até pouco tempo era um tabu e motivo de muita insegurança para várias jogadoras. Contudo, na Copa do Mundo realizada esse ano na Austrália, segundo levantamento da Agência Reuters, 87 atletas estiveram assumidas publicamente, enquanto na Copa de 2019, apenas 38 assim se declararam. Só na seleção brasileira, 9 jogadoras colocaram com orgulho a sua orientação sexual. 

Luiza Carolina, assessora parlamentar e jogadora de futebol amador destacou a importância de pensar políticas públicas para o fomento da modalidade e fortalecimento das mulheres no esporte. Foto: Maduh Carvalho.

Entretanto, como destacou Luiza Carolina, esses números podem estar aquém da realidade, especialmente porque ainda persiste na cultura do esporte, tanto na modalidade feminina como na masculina, uma forte LGBTQIA+fobia. Isso tanto nos clubes grandes, quanto nos pequenos times. A realidade é ainda de criminalização da prática através da lesbofobia. “As meninas não falam da sua sexualidade porque isso é um impeditivo para a sua participação no futebol”, destacou Luiza Carolina. 

Público presente na Ação Cultural Feminista. Foto: Maduh Carvalho.

Há muito ainda a ser enfrentado pelas mulheres no futebol, desde a infância, no enfrentamento ao binarismo de gênero, no acesso a oportunidades e desenvolvimento daquelas que sonham em serem jogadoras um dia. Das trabalhadoras do esporte, seja na saúde, como técnicas ou como jornalistas esportivas. Há ainda o desafio, sobretudo, em nossas presenças também fora de campo, ocupando as arquibancadas com direitos, sem violência e assédios. Há ainda muito a avançar e seguirmos dialogando. A certeza é que esse assunto não se esgota por aqui.

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