O Caso Joyabaj, uma performance racista e patriarcal

Guatemala 2020: Uma audiência em um julgamento de província de um país empobrecido. Várias mulheres indígenas e líderes de organizações sociais são acusadas de promover destruição e desordem pública após um protesto. Há fiscais, advogados, vítimas, intérpretes, policiais, imprensa e assistentes: uma mistura de etnicidades, culturas, classes, gêneros e idiomas indígenas. Porém o sistema de justiça é colonial e, de antemão, ignora e despreza os povos indígenas e as mulheres. 

Os processos judiciais abertos ao público são novos na Guatemala. A reforma judicial que instaurou o debate oral como núcleo dos mesmos, data de 1994, quando se passou do sistema inquisitorial, escrito, ao debate oral acusatório, onde há exposição de fatos, argumentação contra e a favor. Graças a isso, pudemos presenciar várias das opiniões mais importantes da história recente e, hoje, em meio à terceira onda de Covid-19, duas audiências intercalares do Caso Joyabaj onde se imputam delitos a quatro mulheres k’iche’.

​Joyabaj ou Xol Ab’aj (“Entre pedras”) é um município do departamento de Quiché no planalto guatemalteco, com uma população de mais de cem mil habitantes, predominantemente (83%) indígenas falantes do idioma k’iche’, dedicada a trabalhos do campo, comércio, serviços e outros, com uma taxa de migração das mais altas do país. Conhecida por seus tradicionais bailes do Pau Voador e da Cobra, foi cenário da violência estatal durante os anos da guerra contra-subversiva. Depois vieram os massacres nas aldeias e, posteriormente, a obrigação a integrar-se e apoiar as Patrulhas de Autodefesa Civil sob o comando do exército, que as instrumentalizou como frente de batalha contra as populações locais. É necessário lembrar que os xoyes também foram utilizados como mão de obra para fazendas de café que proliferaram a partir do século XIX nas terras baixas e na costa, expulsando as comunidades. A pobreza e a extrema pobreza são outros traços dessa população, asfixiada pela desigualdade abismal que afeta de maneira brutal os povos indígenas.

​O Caso Joyabaj, como ficou conhecido nos meios de comunicação, é mais um exemplo do uso da perseguição penal e da criminalização contra aqueles que se opõem aos abusos de funcionários, das empresas extrativistas e outras instituições que constantemente violam os direitos, sobretudo, dos povos indígenas e das mulheres, com maior força. A defesa dos territórios, de rios e montanhas, dos idiomas, da memória e da verdade, assim como dos corpos e da sexualidade, tornou-se motivos para que o Estado persiga, capture e até elimine líderes de movimentos diversos, nas diferentes regiões do país.

​Quando caracterizo este processo como performance, o faço considerando o cenário onde se realiza, os personagens que intervêm, os símbolos, as relações, os poderes, as palavras, as interpretações e as representações que ali são colocados em jogo e entreverão por diferentes razões, compartilhando a participação de um tribunal de província em um país empobrecido. O conjunto que constituímos e que ocupamos temporariamente esse não-lugar, para protagonizar, observar ou documentar a interação de fiscais, advogados, vítimas, intérpretes, policiais, imprensa e assistentes, é uma mistura que configura etnicidades, culturas, classes, gêneros, de maneira complexa, atravessada por profundas brechas que nos impedem de nos aproximarmos e de nos compreendermos. Não apenas pelos idiomas ou pelas diferentes posições políticas e econômicas, mas pelas máscaras e protetores faciais com que nos esboçamos como proteção necessária em uma zona vermelha de Covid-19.

​Como dissemos, o processo se realiza em território K’iche’; as pessoas incriminadas falam esse idioma, têm crenças, cosmovisões e costumes próprios da referida cultura, mas todo o procedimento judicial, auspiciado e amparado pelo Estado da Guatemala, é em espanhol ou “castilha”, como é chamado comumente. A partir desse lugar, vemos a injustiça do sistema que viola o direito das pessoas de saberem de que estão sendo acusadas, de se defenderem em seu idioma e, além disso, nega e desconhece as formas de justiça indígena que praticam nas comunidades, e impede a busca de soluções, impondo penas.

​O sistema colonialista da Guatemala é excludente porque impede a população de ser sujeito dessa justiça que, de antemão, ignora e despreza os povos indígenas e as mulheres. Neste caso, embora as acusadas tenham contado com uma intérprete que lhes traduzia ao ouvido o que ali se expunha, é impossível traduzir os termos e estilos solenes com vocábulos especializados, ininteligíveis para o resto dos mortais. 

Sebastiana Pablo, líder da organização que luta pelos direitos das vendedoras e dos vendedores do mercado de Joyabaj, também questionou os atos de corrupção no manejo dos recursos públicos. É analfabeta e não fala espanhol, vende produtos básicos no mercado. Nessa qualidade, e como autoridade indígena, foi com a Associação de Comerciantes à prefeitura, no dia 24 de agosto de 2020, para entregar um documento com petições ao prefeito Florencio Carrascoza que, diga-se de passagem, ocupa esse cargo pelo quarto mandato, foi apontado como corrupto em múltiplas ocasiões e aparece na lista Engel publicada pela embaixada dos Estados Unidos como um funcionário que obstaculiza a justiça, além de ser acusado de violência contra as mulheres. Dona Sebastiana, Petrona Siy, Micaela Solís e Anastasia Mejía também foram capturadas no ano passado, acusadas de serem causadoras e participantes nas destruições provocadas contra o edifício municipal nessa ocasião, por parte de pessoas que não se sabe de onde vieram e que, apesar de serem identificáveis, não estão sendo acusadas.

Anastasia Mejía Tiriquiz é k’iche’, xoy, conhecida como comunicadora, fundadora de Xol Ab’aj TV; é Ad q’ij, quer dizer, contadora dos dias ou conhecedora do calendário maia e defensora dos direitos humanos. Sua oposição ao mencionado prefeito, suas denúncias de atos ilícitos, assim como a fiscalização do referido governo, tornaram-na alvo do ódio machista e racista, amparado na impunidade. Dessa maneira, Anastasia esteve presa durante 37 dias, junto a com a senhora Petrona Siy, parteira, autoridade ancestral, presidenta da associação. Três delas foram liberadas sob fiança e choraram tristemente quando tiveram que sair, deixando sua companheira de infortúnio Sebastiana Pablo na cadeia de Xela, sozinha, temerosa, maltratada, e que depois de onze meses de cativeiro, finalmente, conseguiu medidas alternativas para voltar para sua casa, com a condição de ir a cada quinze dias para assinar um termo de responsabilidade, e sem poder sair dos limites do município.

Foto gentileza de la autora1/1

O sistema judicial na Guatemala raramente funciona como deveria. Segundo denunciou a Comissão Internacional contra a Impunidade na Guatemala, auspiciada pelas Nações Unidas, existe mais ou menos 99% de impunidade nos casos apresentados pelo Ministério Público. É sabido e foi denunciado que magistrados, juízes e fiscais se alinharam e são parte das redes de corrupção que fizeram do Estado seu modo de vida e a estrutura idônea para que os grupos criminosos atuem sem pudor e com toda a impunidade.

O atraso daninho, os recursos dilatórios, o abuso na apresentação de amparos, a manipulação e a falsidade são alguns dos mecanismos que usualmente utilizam essas redes criminosas para que os processos mostrem vícios, desde que se apresentem e se prolonguem, ignorando o princípio de prover justiça rápida e cumprida. Esse emaranhado de manobras e subterfúgios se torna um labirinto de pesadelo para aquelas que são perseguidas e acusadas por sua rejeição às políticas de corrupção. Dessa maneira, na Guatemala, várias mulheres e homens se encontram atrás das grades, considerados como presos políticos por defender os territórios, como é o caso do professor Bernardo Caal, ativista q’eqchi’, que faz oposição à construção de mega hidroelétricas no rio Cahabón do município de Alta Verapaz.

Voltando à visão do processo como performance, é importante destacar que a presença de mulheres é cada vez mais notória nestes cenários, tanto no papel de reclamantes e testemunhas contra os militares, violadores, criminosos, como acusadas de delitos; advogadas, fiscais, secretárias, oficiais, juízas são parte central do elenco. Embora quantitativamente a quantidade de mulheres aumenta, isso nem sempre corresponde a sua qualidade. Exemplo lamentável disso é a atual Fiscal Geral do MP, Consuelo Porras, a serviço das redes de corrupção e escudeira do presidente e seu governo em atos ilícitos, repudiada pela população que exige a sua renúncia.

Como contraparte, há mulheres dignas, valentes, confiáveis, como as honoráveis juízas Yassmin Barrios e Érika Aifán, as ex-fiscais Claudia Escobar Mejía e Thelma Aldana, reconhecidas e valorizadas por seu correto desempenho e trajetórias. Também no trabalho diário de preparar os casos, estão envolvidas advogadas, comunicadoras, peritas, defensoras, lutando em um mar de podridão onde o risco de naufragar é grande.

“Na luta pela transparência”

A audiência intercalar fixada para a sexta-feira, três de setembro de 2021, no Tribunal de Primeira Instância de Nebaj, um povoado localizado a 1900 metros sobre o nível do mar, composto predominantemente por indígenas ixiles, tem início com a retirada do caso do senhor Manuel Hernández, um homem supostamente implicado, que faleceu recentemente. O trâmite é resolvido com a exposição da certidão de óbito. Logo, os fiscais do MP expõem – de maneira torpe e mal intencionada – as razoes pelas quais acusam a jornalista Anastasia Mejía, cujos vídeos são utilizados como prova contra ela, e a senhora Petrona Siy, ambas acusadas de conspiração e atentado grave.

Tenho que fazer um esforço enorme, do mesmo modo que outras pessoas presentes, para não rir, bater as pernas ou gritar diante dos argumentos falsos, subjetivos, absurdos, esgrimidos pelos acusadores: que suas testemunhas afirmam que Anastasia “se fez passar por jornalista”; que estava filmando no lugar dos fatos e que não fez nada para deter a multidão; que continuou narrando o saque e queima de “la muni”[1], que não usava crachá de identificação como jornalista; que no vídeo sussurra algo… Dona Petrona é acusada de ter planejado e organizado a manifestação e do subsequente vandalismo, assim como de agredir uma policial municipal, embora nas tomadas exibidas se vê claramente que ela não está na cena nesse momento. Muito estúpido e incrível.

Foto gentileza de la autora1/1

A equipe que acompanha as acusadas está composta por advogadas como Ana López Sales e Ingrid Ajsivinac, fundadoras da Associação Chomija’ que reúne advogadas indígenas, que trabalharam e contribuíram para o processo de maneira estratégica. As peritagens culturais, de jornalismo e de gênero, realizadas por especialistas, sustentam os argumentos que demonstram que Anastasia é uma jornalista comunitária que levou informação ao seu povo, cujo trabalho é objetivo e responsável. Este conceito permite fundamentar a importância da comunicação como um direito dos povos na defesa de seus territórios e, além disso, a situa como atora chave da democracia.

As advogadas Dinora Rodríguez e Floridalma Aquilar, com experiência nessa região do país, e que atuaram como defensoras na audiência, foram contundentes ao apontar falhas da argumentação, os vícios do processo, as contradições dos fiscais e, inclusive, demonstraram que o prefeito provavelmente propiciou o ataque à prefeitura, com a finalidade de que certos documentos que pudessem comprometê-lo fossem destruídos. São contrastantes a atitude, a conduta e o desempenho delas, frente a esses tipos grotescos que mostram desprezo pelas partes, e até dormem na audiência.

O juiz Gilmar Barrios, um advogado anteriormente questionado por sua atuação em processos de Direitos Humanos, que em sua intervenção citou de memória artigos e convenções internacionais, depois de haver concedido a palavra às partes, faz uma ilustrada argumentação – que nos mantém na expectativa – para chegar à conclusão de que não há indícios nem meios suficientes que demonstrem que as acusadas cometeram os delitos imputados, e determina arquivamento do processo, com o qual não podem voltar a acusá-las por esses supostos delitos. Encerrado o caso, ambas ficam em total liberdade, como afirmou Anastasia, “na luta pela transparência”.

Reprimidos a vontade de aplaudir e celebrar, mas as lágrimas correm por conta própria. A justiça, essa instituição racista e patriarcal, funcionou a favor das companheiras. São estas as faíscas de esperança que nos fazem seguir trabalhando para que na Guatemala floresça o bem-estar.

Saímos para a fria chuva de Nebaj e recebemos outra boa notícia: nessa mesma manhã, em um tribunal da Antiga Guatemala, foi determinada a prisão preventiva contra um empresário acusado de violação sexual, denunciado pela jovem Verónica Molina, apoiada por grupos e organizações de mulheres que celebram este pequeno passo a favor da justiça, repetindo #NãoÉNao e #EuAcreditoEmVocê. Resta pela frente outro longo processo que pode, inclusive, deixar em liberdade o estuprador.

De Nebaj até em casa, há mais de seis horas de estrada, se por sorte não houver algum acidente ou percalço, comuns na Guatemala. Com minha companheira de viagem e colega jornalista, comentamos os detalhes da audiência, celebramos a resolução e enfrentamos com serenidade e paciência os desafios de viajar por rodovias descuidadas que atravessam paisagens lindas. Nos animam as histórias compartilhadas pelas advogadas maias, nos estimula saber que mulheres de diferentes idades e procedências, livrando grandes obstáculos, seguem lutando contra a impunidade. E apesar da pandemia e do fantasma que a acompanha, nos felicitamos e agradecemos por termos sido testemunhas de um momento histórico como este. 

A performance de hoje terminou, não assim o caminho das mulheres por uma justiça que ponha um ponto final na violência contra as mulheres. Anastasia deu início a um trâmite de pré-julgamento contra o prefeito, por violência contra as mulheres, processo que pode ficar engavetado por anos. Da mesma forma, terá que dar continuidade ao julgamento de dona Sebastiana Pablo, acusada de conspiração, um delito que pode ser imputado segundo a interpretação.

Em todo caso, parece-me admirável que pessoas criminalizadas e encarceradas, ameaçadas e golpeadas, continuem em resistência pela rota da defesa dos territórios, construindo uma Iximulew (“Terra de Milho”) onde todas as pessoas possam viver dignamente.

Antiga Guatemala, 6 de setembro de 2021

[1] A prefeitura de Joyabaj

El juez Gilmar Barrios. Intervención sobre fotos de la autora1/1

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