Vivendo com R$ 300: o drama de uma diarista desempregada

Por Marília Parente, no portal LeiaJá!.

De acordo com a PNAD Contínua do IBGE do 2º trimestre (abril, maio e junho), no Brasil, o número de trabalhadores domésticos formais que ficaram desempregados foi de 4, 33 milhões, o equivalente a 72,53% da categoria das trabalhadoras domésticas

Cuscuz, arroz e feijão. Um balde acomodado na cozinha da casa da trabalhadora doméstica Conceição* reserva os últimos alimentos da cesta básica entregue há quase um mês pelo Sindicato das Empregadas Domésticas de Pernambuco. Desempregada desde 2019, a diarista viu seu seguro desemprego acabar justo em março deste ano – quando os primeiros casos da Covid-19 foram confirmados no Estado , junto com a esperança de conseguir um novo serviço. Moradora do Paulista, na Região Metropolitana do Recife, ela divide a casa em que vive, com a filha, de dez anos, e o marido, que teve os bicos como pedreiro suspensos.

–> Reportagem integra série do LeiaJá que mostra o impacto da pandemia da Covid-19 na rotina das domésticas brasileiras. Confira também a primeira matéria: Trabalhadoras domésticas: a linha de frente invisível.

Sem qualquer fonte de renda durante a pandemia do novo coronavírus, a família teve a solicitação relativa ao auxílio emergencial negada pelo governo federal. Conceição viveu, nos primeiros meses de crise sanitária, da caridade de instituições e conhecidos e de um valor de R$ 300, correspondente a metade do auxílio conquistado pelo filho de 19 anos, que repassava a ajuda mensalmente.

“Falta fruta, verdura, carne, legumes e medicamentos, se alguém ficar doente, porque não temos de onde tirar. O dinheiro que meu filho manda, só dá para pagar as contas de água e energia, o resto me viro, vou pedindo”, lamenta Conceição. A diarista garante que foi injustiçada pela análise de seu pedido do auxílio emergencial. “Já fui três vezes na Caixa. Disseram que o limite da quantidade de pessoas da minha família que conseguiram o benefício já foi atingido [dois membros]. Meus filhos não moram comigo, mas no interior. Aqui em casa, ninguém recebe”, defende-se.

Ela diz que, graças às galinhas que cria no quintal, nunca faltam ovos para o café da manhã. Por volta das 11h, contudo, é hora de ligar para uma amiga da vizinhança, também desempregada, com quem estabeleceu uma espécie de pacto de sobrevivência durante o período de pandemia. “Eu almoço lá quase todo dia, mas se chega uma cesta básica para mim, ligo pra ela, querendo saber se está faltando alguma coisa. É uma irmã para mim”, afirma.

De acordo com a socióloga e fundadora da ONG SOS Corpo, Betânia Ávila, é comum que domésticas em situação de desemprego formem redes de apoios com outras mulheres residentes em suas respectivas comunidades. “As mulheres pobres sempre encontraram apoio umas nas outras, inclusive um suporte para sair de casa e trabalhar. Elas deixam os filhos com familiares e vizinhas, sobretudo na pandemia, em que a maior parte das escolas está fechada”, explica a socióloga. Ávila também destaca que esse suporte é necessário principalmente para as domésticas que prestam serviço em um município no qual não nasceram. “Faz parte da história da profissão o fluxo migratório de meninas que saiam no interior para a capital com a promessa de estudar e trabalhar, mas na cidade grande se transformavam exclusivamente em domésticas, morando em quartinhos na casa dos patrões”, frisa.

“Minha vida sempre foi sofrida”

Natural de Canhotinho, no Agreste de Pernambuco, Conceição foi embora para Olinda em 1996, aos 16 anos, decidida a ganhar o próprio dinheiro. “Minha vida sempre foi sofrida. Meu pai se separou de minha mãe, que ficou com seis filhos para criar. Quem sustentou a gente foi minha avó, com uma aposentadoria. Nessa época, recebi a proposta de ir embora morar em uma casa de família, trabalhando como babá”, lembra. De domingo a domingo no serviço, tinha um fim de semana de folga a cada 15 dias, quando se dispunha a pegar cerca de 200 km de estrada para visitar a família. “Levava um pouco do que ganhava para ajudar. Naquela época não tinha salário, as patrões pagavam o que queriam. Se eu tivesse tido carteira assinada, já estaria aposentada, sem precisar estar passando por essa situação”, conta.

Conceição também lembra que, no início da carreira, o fato de morar na casa dos empregadores a obrigou a deixar que os dois filhos mais velhos – atualmente, um deles com 19 anos e outro com 21 anos – fossem criados por sua mãe. “Hoje sofro muito, porque nunca dei amor e carinho para os meus filhos, mas para os da patroa. Eu trabalhava para dar roupa, sapato e comida, mas eles têm essa mágoa, dizem que eu não sou a mãe deles. Isso enche meus olhos de lágrimas, porque é verdade”, desabafa.

Foi só nos anos 2000 que Conceição conseguiu alugar um barraco, pelo valor de R$ 400, em uma comunidade que prefere não revelar, no bairro de Maranguape II, no município do Paulista, região Metropolitana do Recife. “O lugar onde vivo se transformou em uma casa de alvenaria graças ao programa Minha Casa, Minha Vida. Se eu não tivesse uma residência própria este ano, pode ter certeza de que eu estaria sem ter onde morar”, frisa.

Apesar das dificuldades que marcam sua trajetória, Conceição relata que nunca havia experienciado um período tão longo sem trabalho como o da pandemia do novo coronavírus. “Sempre me dei bem com as pessoas, por isso acabava conseguindo algo. Com a pandemia, perdi todas as minhas diárias, porque as patroas não podem mais pagar ou não querem a gente indo para a casa delas, com medo de se contaminarem com esse coronavírus. Elas mesmas estão fazendo as tarefas da casa”, comenta.

Informalidade

Diante do cenário de incertezas complexificado pela pandemia da Covid-19, Conceição conta que sonha em sair da informalidade. “Também não quero trabalhar mais para ninguém. Minha ideia é juntar dinheiro, abrir um comércio e ser minha própria patroa e empregada, já sofri muito. Daqui a pouco chegam meus netos e quero poder finalmente trazer meus filhos para perto”, desabafa.

De acordo com o artigo 1º da Lei Complementar 150 de 2015, é considerado empregado doméstico o trabalhador que “presta serviços de forma contínua, subordinada, onerosa e pessoal e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas, por mais de 2 (dois) dias por semana”. A legislação, portanto, trata como diaristas os trabalhadores que comparecerem até duas vezes por semana no local de trabalho, só havendo vínculo empregatício para o funcionário e obrigação trabalhista para o empregador quando a periodicidade semanal é igual ou maior do que três dias.

Sem vínculo, por vezes, as diaristas acabam entre os 75% de trabalhadores domésticos que figuram em situação de informalidade, conforme aponta o Estudo 96 de 15/07/2020 divulgado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), intitulado “Quem cuida das cuidadoras: trabalho doméstico remunerado em tempos de coronavírus”. Este grupo representa 6.230.000 trabalhadores ocupados, cujo perfil é de extrema vulnerabilidade social.

Foram os informais, aliás, os trabalhadores domésticos que mais sentiram o impacto da pandemia da covid-19. De acordo com a PNAD Contínua do IBGE do 2o trimestre (abril, maio e junho), no Brasil, o número de trabalhadores domésticos formais que ficaram desempregados foi de 1,64 milhão (27,47%), enquanto 4, 33 milhões de  informais, o equivalente a 72,53% da categoria, perderam postos de trabalho. Para se ter uma ideia, no período correspondente de 2019, perderam postos de trabalho  58 mil (28,16%) domésticos formais, assim como 148 mil informais (71,84%). “O segundo trimestre de 2020 representa o auge da pandemia. Por medo de ser contaminado, a primeira coisa que o empregador faz é liberar a diarista, com quem não possui vínculo. Assim, a maioria delas, que tinha duas diárias com uma determinada família, ficou sem renda”, comenta Mário Avelino, fundador e presidente da empresa Doméstica Legal e da ONG Doméstica Legal.

Avelino espera, contudo, que 2021 seja um ano de recuperação para as domésticas. “As demissões começarão a ser estancadas e voltarão as admissões, principalmente para as diaristas, que devem voltar a ter diárias”, projeta. Até lá, o empresário promete cobrar a a aprovação de projetos de lei que considera fundamentais para a formalização da categoria. O primeiro deles, é o PL 8.681, apresentado pelo deputado federal André Figueiredo (PDT-CE) em 2017. “O texto propõe a criação do Programa de Regularização Previdenciária do Empregador Doméstico, que é um refinanciamento da dívida do INSS do empregador doméstico em até 120 meses, com isenção total da multa por atraso e redução de 60% dos juros de mora por atraso. Se esse projeto for aprovado, poderemos estimular que metade das informais seja regularizada”, comenta.

No senado, Avelino também acompanha o PL 1.766, de 2019, de autoria do senador José Reguffe (Podemos-RJ), que sugere a “prorrogação por mais cinco anos da possibilidade de deduzir do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) a contribuição patronal paga à Previdência Social pelo empregador doméstico”. “Quanto mais a gente diminuir o custo de quem emprega, mais formalidade  e maior o estímulo à retenção de emprego”, opina.

*Nome fictício

Fotos: Júlio Gomes/LeiaJá Imagens

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