Por Carmen Silva, para o projeto Adalgisas
Educadora do SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia e militante do Fórum de Mulheres de Pernambuco
Poucos anos atrás se alguém dissesse que íamos viver uma eleição municipal em 2020 no meio de uma pandemia e sob a batuta de um presidente que aspira ao fascismo, a gente ia pensar que era um filme sobre um futuro distópico. Mas é o que temos pro momento. Uma situação de muito risco para as pessoas que lutam por justiça e igualdade. Mas também um tempo de esperançar, de construir possibilidades de novas formas e novos caminhos para representação parlamentar e para os governos municipais. Em um momento tão difícil para a frágil democracia brasileira, enfrentar a sub representação das mulheres, das pessoas negras, jovens, LGBTQI e da classe trabalhadora segue sendo um grande desafio.
A crise que atravessamos no Brasil tem a ver com o nosso sistema político e com os interesses do capital. O projeto ultraliberal está empenhado na privatização do petróleo, dos minérios e das águas, no aprofundamento das privatizações e na redução dos direitos e das políticas sociais. No Congresso Nacional, a direita fundamentalista se volta contra as mulheres e querem aprofundar o controle sobre nosso corpo e nossa sexualidade. As empresas de mídia estimulam o ódio sexista e racista para criar condições para pôr fim aos poucos direitos conquistados pelas mulheres, povo negro e outros grupos explorados e dominados. As milícias operam com o terror nas periferias, articuladas às polícias, braço armado do racismo de Estado. Estas forças que compõem o bolsonarismo se apresentam nestas eleições para ocupar as câmeras municipais e trazer para o âmbito local e pra nossa vida cotidiana o desmonte do Estado que temos visto no plano federal. Derrotar a extrema direita bolsonarista é a grande tarefa deste período eleitoral.
Os movimentos feministas no Brasil há muitos anos fazem uma crítica contundente ao sistema político e a sub-representação feminina, das pessoas negras e indígenas no parlamento. Quantitativamente, nós mulheres, sendo 52% da população brasileira, somos apenas 15% no Congresso Nacional, e se somos mulheres negras a situação piora muito. O feminismo defende uma reforma do sistema político numa visão ampliada. Uma reforma que contemple os instrumentos de democracia direta, participativa, representativa, o sistema de justiça e de comunicação, com vistas a ampliar a democratização do poder. Defendem a proposta de mudança na forma da eleição, com voto em lista partidária fechada, composta com alternância de sexo e de raça, com partidos que apresentem programas para a sociedade e não apenas campanhas midiáticas em período eleitoral.
Nós mulheres somos sub representadas na política porque a situação de desigualdade entre os sexos inviabiliza que esta participação se dê em igualdade de condições. Todas nós sabemos que, além da vida pública, assumimos a ampla maioria dos encargos da vida privada com o trabalho doméstico, e os encargos com o cuidado a pessoas da família. A cultura política predominante reserva para as mulheres o lugar da vida privada, ainda que com privação de condições adequadas de vida. Quando mulheres assumem lugares de poder são vistas como “fora do lugar”, tratadas como inadequadas. Basta lembrar todas as ofensas sexistas que foram feitas contra a presidente Dilma por ocasião do golpe de 2016.
Mas é tempo de esperançar, e precisamos olhar para uma forte novidade política: o enorme crescimento de candidaturas de mulheres jovens e majoritariamente negras e de periferia, entrando na disputa eleitoral a partir de uma trajetória de participação em movimentos sociais, muitas das quais são candidaturas feministas e antirracistas. Cresceram muito neste ano as articulações e campanhas em apoio a candidaturas feministas e antirracistas, ou mesmo para candidaturas de mulheres, ou pessoas negras, não especificando o projeto político.
Claro que como o nosso sistema eleitoral se baseia no voto nominal articulado com a eleição por coeficiente eleitoral, antes das coligações e agora dos partidos, há riscos destas candidaturas de novo tipo alimentarem a velha política que não nos representa. Mas o contrário também pode acontecer. Ampliou-se a potencialidade de renovação política, a médio prazo, ainda dentro das regras destes sistema político-eleitoral, que lutamos tanto pra transformar. Podemos sair desta eleição com uma grande ampliação do número de mulheres vereadoras e prefeitas no país. Oxalá esse sonho se realize.
Importa eleger mulheres. Mais mulheres no executivo e no parlamento pode gera uma massa crítica capaz de apresentar outro olhar sobre as decisões políticas e, especialmente, sobre as políticas que alteram a situação de desigualdade em que as mulheres vivem. Importa ainda mais eleger mulheres feministas e antirracistas, pois aí entra no jogo um projeto político que realmente disputa os rumos das leis e das políticas públicas em favor do enfrentamento das desigualdades. Eleger mulheres feministas antirracistas e derrotar o bolsonarismo, taí o grande desafio desta eleição.