Em Santiago do Chile, há uma prisão à qual chegam centenas de cartas, de muito longe e de muito perto. Há, sim, quem quer saber como são seus dias durante a pandemia. Uma professora de literatura conta que, nas prisões, a carta ainda é um meio de comunicação importante e que as mulheres têm medo de morrer ali sem poder ver seus filhos e filhas. E pode ser que estas cartas sejam sua maior companhia.
Por Florencia Pagola | Revista BRAVAS n.12
Quando começavam a se confirmar os primeiros casos de covid-19 no Chile, as mulheres privadas de liberdade no Centro Penitenciário Feminino Santiago (CPF) não podiam fazer mais do que se consolar entre elas. Suas visitas, as atividades recreativas e a escola foram canceladas. São mais de 600 mulheres e lhes aterroriza se contagiar porque convivem em um espaço com poucas possibilidades de distanciamento físico. No início de abril, o vírus se propagava como um barril de pólvora na vizinha prisão para homens Puente Alto – uma das prisões mais afetadas em Santiago pela crise sanitária. A ansiedade e o confinamento se duplicaram quando começaram a ver seus filhos e filhas apenas virtualmente, e quando podiam.
Foi Paulina Vergara Almarza (a professora de literatura que ensina às mulheres privadas de liberdade a escreverem contos, relatos e cartas; a licenciada em língua e literatura hispânica; a mulher de cabelo curto, sobrancelhas cheias e olhos vidrados quando conta o que suas alunas estão passando; a “única sobrevivente”, segundo elas, a única que as visita, a que continuou indo toda sexta-feira ao Centro Penitenciário Feminino Santiago. E a que decidiu continuar, de alguma forma, com as atividades literárias que dirige ali desde 2016.
Utilizou as redes sociais para convidar quem quisesse escrever uma carta às mulheres na prisão. A espera durou pouco: entre final de abril e começo de maio, Paulina recebeu umas 250 cartas e ainda continua contando. “Pensei que apenas minhas amigas iam escrever, as que têm interesses sociais, mas chegaram cartas de todos os lugares: México, Colômbia, Bélgica, Polônia, Argentina, de chilenos que estão fora… lugares realmente distantes. Ainda continuam chegando cartas”, conta com surpresa através de um vídeo.
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Oi, Manzanita: Como vão as coisas: o ânimo, os dias…? Me conta, que atividade e o que mais você gosta de fazer? Ou qual você gostaria de fazer? Foi uma surpresa muito bonita receber sua resposta… acho que agora seremos amigas de correspondência. Nunca imaginei! :) (…) Escrever-lhe me faz pensar muito em como vivem e as necessidades que têm. Até logo, um abraço. Maca
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Paulina recebe as cartas em seu e-mail, as imprime, as leva ao CPF; vai pavilhão por pavilhão entregando cartas, e folhas e lápis para voltar com as respostas, das quais tira foto e envia por e-mail. Diz que sua casa está tomada pelas cartas: são muitas, separadas em pastas coloridas. Dentro do CPF, estão participando do intercâmbio umas 40 mulheres, “algumas muito comprometidas, que toda sexta-feira têm sua resposta e me pedem mais cartas para ter correspondência com duas ou três pessoas. E outras se esquecem, e sua resposta se dá a cada duas semanas”, explica.
O curioso é que rapidamente se formaram duplas que se animaram a continuar se escrevendo. Paulina destaca que “para cada dupla que se forma, há um encontro de dois mundos que não teria acontecido de outra maneira”. Diz que “há cartas políticas; outras super narrativas com contos, histórias, poemas, e que há pessoas que contam seus problemas no primeiro contato”. E o que é fundamental: “quase todas são de uma profunda solidariedade e de não julgar a outra”.
Ela está convencida de que este exercício “pode ajudar a percepção que se tem fora da prisão sobre aqueles que estão dentro dela”. “Sobretudo para descobrir a subjetividade destas pessoas: sim, roubou, mas não necessariamente o fará durante toda sua vida. Também ama, sofre, tem sonhos e, em geral, um passado bastante infeliz que tem a ver com as causas pelas quais as mulheres vão para a prisão em nosso país”.
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Olá carinho, espero apesar de tudo que esti [sic] bem. O outono faz cair as folhas secas das árvores. O sol já não esquenta como antes. A tristeza e o medo governam corações vazios. E ontem olhei um rato subir e se perder no desvão. Quebrei a televisão e comecei a sonhar, sonhei que voava. E tu que sonhaste na última vez? Respira lento, respiro lento. Te amo.
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No momento, no CPF, tem-se a expansão do vírus controlada, embora não se saiba o que vai acontecer. E, apesar de já não sentirem medo do contágio, o desgosto pelo confinamento e a falta de atividades pesam mais do que nunca. Repetem e escrevem “Sikosia” por toda parte; é esse termo que usam para aquelas que já não estão aguentando o confinamento.
Uma das primeiras sextas-feiras de receber cartas, uma garota disse a Paulina que a esperasse, que em seguida queria responder. “Contou a outra pessoa que já tinham duas agentes contagiadas e que ela estava preocupada pelo seu filho; tinha medo de sair morta da prisão. Imediatamente sentiu necessidade de escrever isso”, afirma Paulina por meio de um vídeo, como se a garota lhe tivesse passado toda sua urgência.
Segundo ela, as mulheres na prisão têm muito entusiasmo com as cartas porque podem se comunicar com pessoas desconhecidas e, além disso, refletir consigo mesmas: “a carta permite que te subtraias de teu entorno para contar a outra pessoa quem és, ordenar tuas ideias, refletir acerca de como vais te apresentar. Aí, aparece tua situação atual, teus planos, teus sonhos, o que vais fazer quando saíres. Isso fica escrito”. “O primeiro destinatário de uma carta é o próprio autor”, dizia o escritor Pedro Salinas.
Porém as cartas também são muito importantes para as pessoas privadas de liberdade quando se trata de aproximar-se de seu mundo afetivo. A professora é consciente da vigência do gênero epistolar nas prisões, por isso, tenta potencializar este diálogo buscando “outras formas de dizer mais, sobretudo quando há relações que estão muito desgastadas”. E diz: “que uma mãe tome a decisão de escrever uma carta e a entregue atesta que essa mãe – ausente durante o crescimento de seus filhos – esteve presente neles. É uma prova de que foi assim”.
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Reencontro
Querido conto*, as circunstâncias da prisão nos separaram; não era fácil te atender com o soundtrack dos insultos e o zumbido das mulheres esquizofrênicas. Entretanto, me esperaste, e com a narração pude me olhar no espelho dos onze anos e encontrar meu pai na magia do passado. Te contei que ele partiu deste mundo. Apareceram pequenos passos meus, conversas e caminhadas perfumadas com mar e sal. A mão, a mão grande que tomava a minha. Graças a tua criação visitei essa infância esquecida, formosa como os dedos de minha mãe entrelaçando minhas tranças.
Paola Romano, 50 anos, São Joaquim.
* [Texto escrito por una participante da oficina literária no CPF e que recebeu uma menção honrosa no concurso literário Santiago em cem palavras, 2020].
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“Uma das garotas me perguntou: ‘olha professora: estas cartas são de verdade ou você as escreveu?’”, conta Paulina entre simpáticas risadas. Para as mulheres privadas de liberdade do CPF Santiago, torna-se difícil acreditar que lá fora, em países distantes, há gente – mais de 90% das remetentes são mulheres – que quer saber delas, conversar com elas. Esta desconfiança não é estanha se revisamos as estatísticas relacionadas com mulheres privadas de liberdade no Chile e na região.
Segundo o estudo “Encarceramento feminino no Chile. Qualidade da vida penitenciária e necessidade de intervenção”, 45% das mulheres privadas de liberdade no país sofreram violência intrafamiliar e 26% abuso sexual na infância ou na adolescência. Estas mulheres veem a separação de seus filhos e filhas pelo encarceramento como a maior dor que possam viver; 89% são mães. A prisão se apresenta a elas como o último estágio de exclusão e desvantagem acumulada, e muitas têm em comum o abuso de substâncias e as condutas autodestrutivas.
No Chile – e na região – 8% da população total em prisões são mulheres, porcentagem que cresceu aceleradamente nos últimos anos. Em sua maioria, as causas se relacionam com delitos menores ou com a distribuição de drogas em pequena escala. Uma atividade que é o sustento econômico de famílias precarizadas, nas quais elas são as cabeças e as encarregadas pelos cuidados.
Quando entram na prisão, sofrem o abandono de suas redes de apoio; e são menos visitadas por seus parceiros – ou simplesmente abandonadas – do que os homens também presos. E assim que a passagem pela prisão esmagou os vínculos familiares, a dignidade e a confiança nelas mesmas, sair em busca de um trabalho legal com uma mochila de estigmas e exclusão para muitas é impossível.
Então, sim, ser mulher em uma prisão e receber uma carta de uma desconhecida em meio a uma pandemia parece ficção. Mas não é, está acontecendo.