A pandemia deixa transparecer os danos causados pelo extrativismo nos países da América Latina. Neste tempo incerto e complexo, evidenciam-se a prepotência, o predomínio do capital sobre a vida e os efeitos da destruição das capacidades produtivas não depredadoras. Com sua história de desafios ao modelo hegemônico e suas ações para combater a fome em tempos de pandemia, as mulheres dos setores populares são atoras presentes e eloquentes. Que essa presença continue sendo visível nas reconfigurações que se produzirem quando o vírus estiver de saída.
Por Lilian Soto| Revista BRAVAS n.12
A região continua imersa no olho da crise que se propagou quase sem aviso por todos os continentes e imobilizou o planeta. Há pouco mais de três meses de declarada a emergência sanitária mundial, a doença já causou mais de 400 mil mortes[1], as medidas de distanciamento se converteram em quarentenas e em uma verdadeira paralisação mundial. As fronteiras foram fechadas em muitos países e, no final de março, quase toda nossa região fechou a passagem para tudo o que não fosse transporte de mercadorias e retornos de pessoas repatriadas. As medidas provocaram alguns impactos inesperados e sumariamente reveladores das consequências dos extrativismos os quais o escritor Eduardo Gudynas descreveu como “muito mais que um conjunto de projetos, já que estão gerando e cristalizando ideias do desenvolvimento arraigadas sobre o progresso material, obcecadas com a valorização econômica e cada vez menos democráticas”.
O cerco autoimposto dos países como resposta à propagação do vírus evidenciou de forma mais clara o dano que causam os mecanismos com os quais opera o modelo extrativista hegemônico nos países da América Latina, e a dois deles se refere este artigo: a política do mais forte para continuar sustentando a prevalência do capital sobre a vida e as consequências da submissão do sul ao que o norte necessita, mesmo às custas de seu próprio bem-estar, consolidando relações de desigualdade e de dominação geopolítica.
A lógica do mais forte
Um elemento chave do extrativismo é a lógica do mais forte: quem tem dinheiro ou armas se apropria dos bens naturais e os explora para seu benefício, inclusive se isso viola os direitos de populações inteiras. Desse modo, na tensão capital-vida, prevalecem os interesses do capital. É o que aconteceu historicamente na região e que adquire, no que se antecipa do século XXI, novos indícios expansivos no marco de violências extremas como “as territorialidades criminosas, violência estatal e paraestatal, violência patriarcal; enfim, expansão das energias extremas”. (Svampa 13).
Em tempos de crise, esta forma de operar, baseada na prepotência e na violência, estende-se a questões básicas da sobrevivência; neste período, aconteceu com os insumos para a saúde, indispensáveis para enfrentar o covid-19. Com efeito, a maioria da mobilização de mercadorias de um país a outro, habilitada a pesar do fechamento de fronteiras, compreende o necessário para garantir o atendimento em saúde da população (máscaras, respiradores, equipamentos de proteção pessoal como macacões, máscaras especiais e outros, os quais, devido à alta demanda, começaram a faltar no começo do período de pandemia). Esta insuficiência desencadeou ações ao estilo pirata, como as denunciadas em relação aos respiradores de Taiwan destinados ao Paraguai, que ficaram nos Estados Unidos[2], ou o ocorrido com várias cargas de máscaras de proteção, em seu trânsito entre China e países da Europa e da América Latina, retidas em alguns deles[3]. Se a isso somamos que, em países como Argentina, Brasil e Paraguai, os grêmios de setores econômicos de poder buscaram levantar as medidas sanitárias rapidamente para evitar perdas de seus imensos lucros, fica claro que o capitalismo extrativista expôs sua pior face neste período complexo para a humanidade, demonstrando que o confronto capital versus vida está mais vigente do que nunca, mesmo em tempos tão incertos e quando a proteção da saúde e a vida deveriam ser priorizadas.
Os alimentos em tempos de pandemia
A outra vertente central da mobilização de mercadorias, habilitada apesar das fronteiras fechadas, é a provisão de alimentos. Permitir a importação-exportação do necessário para que as pessoas tenham garantida a alimentação é também uma isenção indispensável aos fechamentos fronteiriços; sem isso, não seria possível sustentar as medidas de quarentena. Ao analisar isso, visualiza-se claramente que a importação de alimentos hoje é inevitável para países da região com terras férteis e possiblidades de produção para cobrir suas demandas internas, mas que não o fizeram porque as políticas públicas estavam centradas no extrativismo. A “apropriação de recursos naturais para exportá-los” (Gudynas, 7) se contrapôs assim a propiciar o autoabastecimento alimentar na região. É o caso do Paraguai, um país que, com mais de seis milhões de hectares destinados ao cultivo, dedica apenas 6,3%[4] dessa superfície à produção de alimentos; entretanto, o resto está destinada ao agronegócio, que avança sem parar, expulsando os camponeses desde os anos 70 (Riquelme e Vera, 17).
Também é o caso da Argentina, mas a partir de outra perspectiva: a da monopolização na esfera da indústria alimentícia. Este país, embora tenha as possibilidades de abastecer melhor suas necessidades alimentares internas (Dehati et al, 201), tem visto, a partir dos anos 90, a implantação do modelo do agronegócio e com isso a concentração em algumas empresas de todo o processo de produção e comercialização para a exportação, o qual “determina os preços dos produtos em detrimento dos pequenos e médios produtores” (García Guerreiro e Wahren, 330). É o que Vandana Shiva denominava totalitarismo alimentar no início deste século, quando afirmava: “Estamos sendo testemunhas do surgimento do totalitarismo alimentar, no qual um punhado de grandes empresas controla toda a cadeia alimentar e destrói alternativas para que as pessoas não tenham acesso a alimentos diversos e seguros produzidos ecologicamente” (Shiva, 31).
As consequências do dano
Hoje, em muitos países de nossa região, os setores que produzem alimentos começam a cobrar visibilidade apesar das dificuldades, como o campesinato ou as granjas e hortas ecológicas. Porém, se a pandemia continuar, a vacina demorar a chegar, as medidas se estenderão e, como especialistas da economia preveem, o mundo entrará em uma recessão difícil e se produzirá uma baixa da produção dos países provedores de alimentos para o consumo. O que acontecerá com a alimentação?
Durante décadas, neste novo período extrativista[5], nossos países do sul foram obrigados a se especializarem em ser provedores do que o norte necessita, o que implicou a exportação de matéria-prima tirada diretamente da exploração dos bens naturais, expandindo projetos de monocultivos, mega mineração, privatização da água e outros. Nas palavras de Gdynas, “os extrativismos se estenderam em todo o continente, não pela demanda interna, mas pela de outras regiões. O resultado é que se aprovam e implantam empreendimentos extrativos para atender interesses exportadores” (16). Não será fácil que agora, uma vez instalada a crise, o dano causado pelo extrativismo possa ser revertido com rapidez. De fato, dificilmente haverá interesse dos setores do poder econômico em modificar o modelo quando a crise acabar.
E, então, cabe nos perguntar se haverá possiblidades de que o olhar social pós-pandemia valorize mais a soberania alimentar, o autoabastecimento na alimentação e deixe de pensar na exploração dos bens naturais como um horizonte desejável. Provavelmente isso dependerá da disputa que se possa dar diante deste pensamento que hoje soa hegemônico. Sim, pareceria evidente que a direção para onde se decantem nossas sociedades nesta dicotomia, uma vez passada a crise da saúde, dependerá da capacidade que exista de evitar que se monopolize o debate em direção ao olhar e aos conceitos de “desenvolvimento” vinculados ao extrativismo. E de que nessa controvérsia de sentidos participem com voz potente e de protagonista aqueles que têm resistido ao modelo obrigatório e têm sido capazes de gerar alternativas ainda com meios tão diversos.
As mulheres, a resistência ao extrativismo e a pós-pandemia
No lugar de atoras principais da resistência ao extrativismo na América Latina, encontram-se, claramente, as mulheres: as camponesas que desenvolvem hortas agroecológicas e bancos e intercâmbios de sementes nativas para combater a invasão das transgênicas; as mulheres indígenas que se organizam para produzir alimentos nas condições mais difíceis, como as que vivem no Chaco paraguaio e utilizam a alfarroba para produzir farinha; as mulheres dos bairros populares de muitas das cidades da região que organizam hortas urbanas, como as que começaram os empreendimentos de agricultura urbana na cidade de Rosario, Argentina, no final dos anos 80 e início dos 90 (Lattuca, 98), dando início ao que hoje é uma política pública municipal estendida. A inquestionável presença feminina, na resistência ao extrativismo e na produção dos alimentos necessários para a sobrevivência humana, é mais visível do que nunca neste tempo de crise.
Contudo, além disso, as mulheres estão sendo as responsáveis por evitar que a fome se apodere de muitas das comunidades populares da região, organizando panelas e refeitórios que dão de comer a milhares de famílias. Na Argentina, as mulheres de organizações como Bairros de Pé se juntam, com os cuidados necessários, e preparam alimentos para suas comunidades[6]. No Chile, a presença das mulheres na gestão e implementação das panelas comunitárias é marcada e minimiza a fome em muitos bairros de Santiago[7]. No Paraguai, essas iniciativas se multiplicaram em todo o país[8], dirigidas também majoritariamente por mulheres, e nas zonas rurais a produção da agricultura familiar camponesa é a que provê os insumos que possibilitam preparar as refeições completas[9], e, inclusive, abastecem as que se desenvolvem nas zonas urbanas[10].
Tanto a capacidade das iniciativas que resistiram ao extrativismo para prover o alimento básico para a sobrevivência em tempos de pandemia quanto o incentivo das organizações populares para se organizar e combater a fome, e o papel que as mulheres tiveram e têm nesses processos, são saberes que não podem ser silenciados neste tempo, e menos ainda quando ocorrer a saída da crise. Nesse momento, será mais necessário do que nunca elevar a voz e lembrar que o modelo econômico extrativista que se expande na maioria dos países da região não é eficaz para proporcionar o básico em alimentos de que a população necessita em momentos de crise mundial como a que vivemos, e que esses modelos de exploração dos bens naturais, de expansão do agronegócio, de destruição ilimitada dos recursos, envenenamento de cursos de água e exclusão de amplos setores das populações de nossos países, devem ser modificados.
Também deve ficar claro que as mudanças não podem ser produzidas sem a participação daqueles que impedem hoje que à crise de saúde se some e se expanda a catástrofe da fome, por terem sido capazes de propor a soberania alimentar como um horizonte, e de se organizarem para prover alimentação e desafiar, assim, um modelo que “percorre a longa memória do continente e suas lutas, define um modo de apropriação da natureza, um padrão de acumulação colonial, associado ao nascimento do capitalismo moderno” (Svampa, 21).
As prioridades da humanidade, e quem se ocupa delas, revelam-se em tempos de dificuldades, e a pandemia nos mostra hoje que as mulheres e as organizações populares são atoras centrais para identificar e assumir responsabilidades no tocante a aspectos tão indispensáveis, como garantir a alimentação. Suas experiências e aprendizagens não podem ser ignoradas no debate de saída dessa crise e em decidir para onde se orientarão nossas sociedades a fim de assegurar a sustentabilidade da vida.
Referencias
García Guerreiro, Luciana y Juan Wahren. Seguridad Alimentaria vs. Soberanía Alimentaria: La cuestión alimentaria y el modelo del agronegocio en la Argentina. Trabajo y Sociedad Sociología del trabajo- Estudios culturales- Narrativas sociológicas y literarias NB – Núcleo Básico de Revistas Científicas Argentinas (Caicyt-Conicet) Nº 26, Verano 2016, Santiago del Estero, Argentina
Gudynas, Eduardo. Extractivismos. Ecología, economía y política de un modo de entender el desarrollo y la Naturaleza. Cochabamba: Centro de Documentación e Información Bolivia (CEDIB), 2015. Web. 6 de junio. 2020.
Lattuca, Antonio. La agricultura urbana como política pública: el caso de la ciudad de Rosario, Argentina. Agroecología 6: 97, 2012. Web. 8 de junio. 2020
Miranda, Faustina Dehatri; Franci, María; Delgado, María Florencia; Cuenca, Valeria; Quevedo, Cecilia. Seguridad y soberanía alimentaria en Argentina. Universidad de Manizales. Facultad de Ciencias Contables, Económicas y Administrativas. Centro de Publicaciones; Revista Asuntos Económicos y Administrativos; 24; 4-2013; 201-218 Web. 6 junio. 2020.
Riquelme y Vera. Agricultura campesina, agronegocio y migración El impacto de los modelos de producción en la dinámica de los territorios. Asunción: CDE, 2015. Web. 6 de junio. 2020
Shiva, Vandana. Cosecha robada. El secuestro del suministro mundial de alimentos. Barcelona: Editorial Paidós, 2003 (2000). Impreso.
Svampa, Maristella. Las fronteras del neoextractivismo en América Latina. Calas, 2019. Web. 8 de junio. 2020
[1] Ver em https://es.statista.com/estadisticas/1095779/numero-de-muertes-causadas-por-el-coronavirus-de-wuhan-por-pais/
[7] Ver em
[8] Ver em
[9] Ver em
[10] Ver em