Corrente em que surfou presidente é antiga e tem raízes profundas: autoritarismo, machismo, concentração de terras, escravidão. Mas pandemia impulsionou debates sobre novos projetos — serão capazes de levantar uma nova onda de resistência?
Por SOS Corpo, na coluna Baderna Feminista| Ilustração: Stephanie Pollo
Quem de nós, que lutamos por dias melhores, não tem ânsia de vômito ao ver a cara de Bolsonaro, bradando em altos palavrões, o seu descaso com as pessoas que morreram pela covid-19? É revoltante tudo isso que estamos vivendo. Então, porque Bolsonaro não cai? O que podemos fazer pra derrubá-lo? Partindo dessas inquietações, vamos discutir quem e o quê criou Bolsonaro, o que este modo de atuação do atual governo significa, e o que os movimentos sociais estão fazendo para mudar essa situação. Para nós, do movimento feminista, sempre é tempo de esperança. Daí nossa insistência: “dias mulheres virão”!
É visível que Bolsonaro vem perdendo apoio durante a pandemia. Saiu a franja morista e com ela alguns gigantes da comunicação corporativa que o apoiavam. E, até antes, vários dos assim chamados influenciadores digitais. Os governadores de direita de SP e RJ largaram o barco nos primeiros sinais de água, artistas famosos estão revendo posições, e até fortes expressões do poder judiciário, que foram tão centrais no golpe, travestido de impeachment da presidenta Dilma, já estão falando em fortalecer as instituições democráticas. Então, porque ele não caiu ainda? Será por conta da sua margem de apoio nas pesquisas de opinião pública que, embora declinando, ainda não despencaram? Será que as pessoas que ocupam os lugares centrais nas instituições da República estão acovardadas diante da ameaça fardada? Ou será que o bolsonarismo tem raízes mais profundas do que imaginamos?
No meio destes pulos pra fora do barco chamou atenção um, em especial, o apresentador de TV que afirmou nunca mais entrevistar o presidente. Nas redes sociais os comentários eram de que ele era bolsonarista antes do Bolsonaro. Então, o que é o bolsonarismo? Vamos arriscar algumas respostas. Bolsonaro, um deputado com quase três décadas de atuação, que levou seus três filhos para a mesma carreira, assegurados pelo mesmo tipo de apoio, que tudo indica venham dos bolsões milicianos originalmente do Rio de Janeiro, não chegou à presidência da República graças à sua eloquência na campanha, muito menos por suas propostas de governo. Há algo mais na sociedade brasileira que foi trampolim para esta investidura.
É bom que se diga que correm no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) seis Ações de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) nas quais a chapa Bolsonaro-Mourão é acusada de crimes eleitorais. Se condenada, isso leva à cassação. E, obrigatoriamente à nova eleição presidencial em 90 dias, sob o comando do hoje presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Este senhor que, por um motivo ou por outro, não aceita os mais de 30 pedidos de impeachment do presidente Bolsonaro. E, sem o aval dele, nenhum processo terá início. Se ele mudar de ideia, o processo andará em ritmo lento, e nada garante que ao final teremos o fim do governo Bolsonaro. Se ocorrer, assume Mourão, o que faz com que o governo, que hoje já tem mais militares que à época da Ditadura, se confirme como governo militar com um general na presidência. A menos que, seja aprovada uma proposta de emenda constitucional que altera o papel do vice, daí teríamos novas eleições. Haja correlação de forças favorável neste Congresso para vitória tão potente!
Mas, voltando ao ponto. Estamos chamando de bolsonarismo esta vertente do fascismo que cresceu no Brasil nos últimos tempos. Diferente do que aconteceu na segunda guerra, que colocava “A Alemanha acima de tudo” — e a raça ariana com ela –, este modelo brasileiro, posiciona-se como um fiel vassalo do atual império, os Estados Unidos, frente à disputa de posição com a China. Mas, como aquele, este elegeu um inimigo que pretende eliminar: a esquerda. E aí cabe tudo, a depender do momento, desde aqueles e aquelas que querem mudar o mundo e se empenham na defesa da democracia e na construção da solidariedade, até os outros que estavam agregados ao bolsonarismo até ontem e foram fundamentais para construção do estado de coisas que estamos vivendo.
As ameaças chegam até as instituições, a bola da vez é o Superior Tribunal Federal (STF), que foi achincalhado na reunião ministerial e teve um de seus ministros ameaçado, nas redes sociais, de ser esmurrado e ter sua família perseguida, e também as empregadas domésticas que trabalham em sua casa, por uma das integrantes do grupo dos “300” que faz treinamento miliciano em Brasília.
E é aí que eu queria chegar. Por que a empregada doméstica de um ministro do Supremo entra no discurso da loura? Porque as domésticas são uma das maiores categorias de trabalhadoras, ou seja, são majoritariamente mulheres e negras, vivem em periferias das grandes cidades, muitas ainda dormem várias noites nas casas dos patrões, e não têm os direitos mínimos garantidos. A precariedade na condição de trabalho, aliás, é uma constante para a maioria das mulheres. Não podemos esquecer que as mulheres são 70% de quem vive com trabalho informal, isso é, sem direitos, isso desde antes da reforma trabalhista. A doméstica entrou nessa narrativa porque é contra ela que a direita está organizada. Naquele vídeo ficou nítido a perspectiva de eliminação do adversário, seja momentaneamente um ministro, seja permanentemente a doméstica, que não entrou na roda por acaso. Esta interpretação, se bem que simbólica, pretende demonstrar a política de ódio que está sendo construída por este novo tipo de fascismo.
O bolsonarismo nasce da tradição autoritária presente na cultura política brasileira. As elites, que se originam na concentração de terras e controle sobre os corpos das pessoas que as ocupavam, no envio das riquezas do país para a metrópole e na escravidão de povos sequestrados de África, mantêm fortemente arraigado os seus ideais de dominação. As Forças Armadas são uma presença aterrorizante na vida política brasileira de forma permanente. Os poucos anos contínuos de democracia na nossa história não foram suficientes para erradicar os malefícios desta formação.
O deboche com a vida das pessoas mais pobres e que vivem do trabalho informal presente na oferta de $200,00 para a sobrevivência, quando era reivindicada uma renda básica de cidadania, é uma demonstração disso. Só com muita pressão foi possível aprovar a renda de $600,00 que, aliás, está bem difícil de chegar nas mãos dos mais necessitados.
A política bolsonarista se fortaleceu nos programas policiais de meio dia nas TVs, que banalizam a morte das pessoas negras cometidas pelas forças policiais nas favelas. Ela avançou nas páginas requintadas do jornalão que abriu espaço pro seu guru, Olavo de Carvalho. Ela se sustenta em todos que perseguem as pessoas que divergem da norma heterossexual. Ela quer dominar o corpo das mulheres e proibir quaisquer possibilidades de interrupção de gravidez. É esta política que se expressa esteticamente, durante o processo de impeachment da presidenta Dilma, com um adesivo com a sua figura de pernas abertas para ser fixado em carros no lugar da entrada da mangueira da bomba de gasolina, simulando um estupro. Isso é bolsonarismo. Bolsonaro representa estas ideias.
Mas não é só. O caldo de cultura patriarcal e racista que orienta a vida nacional é também firmado na defesa do enriquecimento a qualquer custo. Para isso vale escravização, trabalho precário, sonegação de impostos, falcatruas e tudo mais. As elites brasileiras que sustentam este governo convergem com seus ideais. Não é à toa que, durante a pandemia, a principal iniciativa governamental na área econômica é socorrer os bancos. O sistema financeiro será o maior beneficiado com esta pandemia. Ele que cobra pedágio do pão que você compra na padaria com seu cartão de crédito e se sustenta com altas taxas de juros. Os bancos não pagarão o ônus da crise, ele vai recair sobre nós.
A outra coluna de sustentação do bolsonarismo foi a aliança construída, por um lado, com os militares, que seguem sendo esta ameaça de fechamento do regime, por outro com os empresários pastores neopentecostais. Sim, porque o crescimento da riqueza destas igrejas é algo imensurável. Eles operam com a manipulação da fé das pessoas mais pobres, penetram no mundo subjetivo dos mais necessitados e, de lá, emerge uma onda de fundamentalismo religioso imensa.
Esta onda, durante a pandemia, está colocando em risco muitas vidas. Ela gera a possibilidade de não confiar nas orientações da ciência e se achar invulnerável pela graça de Deus. O conservadorismo tradicional e o fundamentalismo religioso dão base para o discurso de ódio. Este discurso que se fortaleceu na campanha eleitoral com a disseminação de notícias falsas em grupos perfilados de whatssapp. E hoje espalha a ideia da cura milagrosa com a cloroquina do presidente.
Mas Bolsonaro está perdendo força e pode cair. Nas ruas, nós mulheres que estivemos na linha de frente da denúncia da perspectiva fascista deste governo com o movimento #elenão durante a campanha eleitoral, gritaríamos: “ai, ai,ai,ai,ai,ai,ai, se empurrar o Coiso cai”. Durante a Marcha das Margaridas, em agosto de 2019, as mulheres já gritavam Fora Bolsonaro. Agora, vamos empurrar no espaço virtual.
O enfrentamento ao bolsonarismo vai além do impeachment do presidente. Embora este possa ser um caminho que se viabilize, se mudar a correlação de forças. A possibilidade de anulação da chapa pelo julgamento no TSE pode ser colocada como alternativa. Para isso, é preciso muita pressão a partir da sociedade, coisa difícil de construir nestes tempos de pandemia, mas não impossível.
É claro que tanto o impeachment no Congresso Nacional, como a cassação da chapa pelo TSE, ou mesmo a alternativa do presidente ser afastado por crime comum ou de responsabilidade, a partir dos inquéritos no STF, são alternativas que estão sendo construídas. Existe a hipótese de não dar em nada. Pode ser gerada uma acomodação recheada de ameaças autoritárias, de conflitos entre os poderes, se interessar a muitos grupos políticos a espera tática das eleições em 2022. O risco é que elas não se realizem.
E, claro, também pode ocorrer de Bolsonaro tentar um autogolpe que amplie os seus poderes e anule os outros poderes da República, resta saber se terá apoio militar para isso, ou se arriscará dar um golpe miliciano. Oxalá nenhuma destas possibilidades se concretize.
Pra nós, do movimento feminista, a cassação da chapa pelo TSE se apresenta como uma alternativa radical. Não porque acreditemos que tenha mais chances de ocorrer, mas sim porque entendemos que este governo não deveria ter existido. A crise política produzida para gerar condições para a eleição e os crimes eleitorais da chapa Bolsonaro-Mourão são suficientes para afirmarmos que este não foi um processo democrático. Por isso, seguimos jogando energia na defesa desta posição. Não basta derrubar Bolsonaro. Se Mourão assume, a política bolsonarista continua governando. Isso significa ultraneoliberalismo, fundamentalismo religioso, autoritarismo e ameaças ao funcionamento das instituições democráticas.
Queremos derrubar o governo Bolsonaro-Mourão, mas isso não é suficiente. Há um caminho paralelo de lutas permanente que contribui muito para derrubar este governo, mas também para que possamos construir dias melhores após a sua queda. Os movimentos sociais têm gerado uma onda de solidariedade muito grande nas periferias e junto às populações mais vulneráveis.
Muitos movimentos têm feito também lutas locais de pressão sobre prefeitos e governadores estaduais para garantir direitos durante a pandemia. Além disso, têm ocorrido diversas ações nacionais denunciando a violência contra as mulheres no isolamento social, o genocídio da juventude negra nas periferias, o uso de contêineres para amontoar quem está hoje no sistema prisional, a defesa do SUS, o fim dos programas de compras da agricultura familiar, entre outras.
Duas campanhas nacionais se destacam nestes tempos de vida virtual: a Campanha pela Taxação de Grandes Fortunas e a Campanha pela Revogação da Emenda Constitucional 95, que impôs o teto de gastos sociais por 20 anos. Além disso, já estão em curso ações de denúncia no sistema internacional de Direitos Humanos sobre a violação de direitos no Brasil pelo governo durante a pandemia.
Muitas articulações têm divulgado documentos de posição propondo medidas para enfrentamento da crise social, econômica e sanitária provocada pela pandemia. E muitas destas propostas têm assumido uma perspectiva anticapitalista, e algumas antirracistas e antipatriarcal. Os movimentos sociais têm se colocado como sujeitos políticos diante da crise e se posicionado pela derrubada do governo. Esta autonomia manifesta as redes de solidariedade e a capacidade propositiva são elementos que podem gerar uma nova onda irresistível de mobilização popular, que começa agora, e continua com o fim do isolamento social.