As mulheres Sem Terra cearenses que ocuparam os primeiros latifúndios em defesa do território e da liberdade
Publicado originalmente no site do Movimento Sem Terra em 14 de fevereiro de 202014 de fevereiro de 2020
Por Aline Oliveira
Da Página do MST
É sabido que a luta pela terra no Brasil surge bem antes do MST, cada
uma com suas características e limites, que muitas vezes não
possibilitava uma ampla articulação que fortalecesse as lutas e a
unidade do povo sem terra.
E, no Ceará, esse processo não foi diferente, sobretudo, no que se
refere a participação das mulheres nessa construção, como nos aponta o
trecho da música criada por Maria Lima, durante a 1ª ocupação no
Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). “Nós queremos é
lutar por terra e pão, nós queremos a nossa libertação, meu do Deus do
céu tenha de nós compaixão, dos pobres trabalhadores que não tem terra
nem pão, que vivia
escravizado na fazenda do patrão, trabalhando o ano inteiro sem receber um tostão”.
Nesse
sentido, muitas mãos construíram e constroem o MST ao longo de 36 anos
de existência e resistência, dentre elas, destacamos uma das mulheres
que hasteou a primeira bandeira do Movimento em território cearense,
Maria Lima, hoje com 81 anos de idade, mãe de 15 filhos, militante das
causas populares desde 1989, herdeira de muitas lutas, uma mulher
guerreira que não se intimidou diante das injustiças, da fome e da
exploração dos latifundiário. Muitas foram as vezes em que Maria
desafiou o tempo e os limites de uma geração e ousou entrar na luta em
defesa da terra, do território e da liberdade da classe trabalhadora
camponesa.
Considerada uma das Matriarcas da luta pela terra no Ceará, a
disposição, a coragem são adjetivos muito presente no cotidiano dessa
mulher que ousou lutar e plantar a semente do sonho de liberdade na vida
de muitos camponeses e camponesas que antes não tinham nenhuma
perspectiva de um futuro livre das amarras dos patrões. Maria Lima
participou do I Encontro Nacional do MST, que aconteceu em Curitiba no
Paraná, em 1984, e a partir daí ajudou a articular a vinda de alguns
militantes para fazer o trabalho de base e criar o Movimento no estado.
Alguns anos depois, em 25 de maio de 1989, 500 famílias ocuparam a
fazenda Reunidas de São Joaquim localizada nos municípios de Madalena,
Boa Viagem e Quixeramobim, no sertão central cearense. Nascia a 1ª
ocupação de
terra organizada pelo Movimento Sem Terra no Ceará. Hoje o assentamento 25 de Maio é considerado o berço dessa história.
Com uma formação política consolidada, principalmente a partir das
comunidades eclesiais de base, Lima ressalta a importância de preservar
em seus conceitos de fé e unidade cristã a partir da imagem de um Deus
libertador. “Saímos da teoria e fomos para a prática, as orações sempre
presentes na caminhada, ocupamos a terra, em seguida após dias de muitos
sacrifícios
conseguimos conquistar a terra, e hoje temos tantas conquistas nesse
assentamento, as nossas moradias, tivemos acesso ao crédito, escolas nas
comunidades e até uma escola de ensino médio do campo, rádio
comunitária, enfim, desde que essa bandeira carregada de
responsabilidades foi fincada aqui, muitas lutas foram feitas,
incontáveis conquistas pra fortalecer ainda mais a nossa luta”, afirma.
Pois sem mulher a luta vai pela metade Vivemos em uma sociedade capitalista onde as diversas formas de violências e opressão nos
atravessam.
Esses fatores fizeram com que a participação da mulher na luta sempre
se colocasse como um desafio. E as relações e gênero é algo que o
Movimento, ao longo dos seus 36 anos, tem buscado modificar. As mulheres
passaram a assumir tarefas estratégicas dentro da luta, ocupando
diversas instâncias de condução política, e diariamente provocando a
organização a ser esse sujeito coletivo transformador.
O MST no
Ceará foi pioneiro nas primeiras experiências de ciranda infantil, logo
no início do processo de organização do povo Sem Terra, e se deu
principalmente para garantir a participação das mulheres em todos os
espaços de construção do Movimento. Considerando um contexto em que as
mulheres sempre assumiam a responsabilidade com as crianças Sem
Terrinha e não conseguiam participar das diversas atividades.
O
ser mãe não é um limite para o ser militante e dirigente, logo, com o
apoio do coletivo em assumir o compromisso com a formação e os cuidados
para com as crianças se ampliou essa capacidade e a reflexão sobre o
lugar da infância na luta pela terra.
Mulheres como Isaltina
Monte Lopes, 62 anos, assentada no Assentamento Santa Helena, localizado
no município de Canindé, na região do sertão central do Ceará é uma
destas companheiras que como Dona Maria se desafiou a construir a luta.
Também considerada uma das matriarcas da luta pela terra no estado,
participou da 1ª ocupação de terra do MST. Mãe
de 8 filhos, é uma
mulher batalhadora e continua firme na luta ao conduzir o assentamento
no qual reside, além de ser uma referência política para as comunidades
no entorno.
Participando sem medo de ser mulher
Assim
como Maria Lima, Isaltina Lopes muitas mulheres construíram e constroem a
luta pela terra no Ceará. Maria Ana Silva, Maria de Jesus, Maria das
Graças, entre tantas outras. Ouvi- las é fundamental para entender a
nossa história e nossas raízes. Maria de Jesus, 73 anos, assentada no
Assentamento Canaã Melancias, em Amontada, é uma das mulheres que
romperam as cercas do latifúndio e passou por muitas dificuldades, entre
elas, a perda inesperada de seu companheiro Francisco Araújo Barros,
assassinado por pistoleiros a mando dos latifundiários em 12 de agosto
de 1987. Na época ela tinha 41 anos, já era mãe de 8 filhos, e continuou
na luta pela conquista da terra. A esperança de vê-la repartida permeia
a vida de Maria de Jesus que sempre ressalta a importância da luta pela
terra e do
território, pela libertação da mulher e do homem, assim
como das comunidades Eclesiais de Base que cumpriam um papel importante
em todo processo.
Maria Ana da Silva é assentada no assentamento 10 de Abril, no Crato,
é uma das herdeiras da luta de Caldeirão, tem uma historia de luta
muito sofrida desde a infância até a conquista da terra. Ela sempre
destaca em suas falas a importância de construir a luta unitária, da
educação pública de qualidade, sobretudo por que não teve acesso, mas
nunca desistiu de
continuar nas trincheiras pelas gerações futuras.
Uma aguerrida defensora da agroecologia, mesmo sem ter formação
profissional sempre é convidada pelas universidades da região para falar
e mostrar a produção saudável que realiza.
Em 2019, durante o
1º encontro das matriarcas da luta pela terra no Ceará, Ana relatou
sobre a ausência de educação pública de qualidade para a classe
trabalhadora. “Naquela época quem estudava era filho de fazendeiro, eles
estudavam e a gente ia plantar cana”. Mas, os olhos de Ana brilham
mesmo quando ela fala de agroecologia, de como cultiva suas plantas que
depois vende na feira, e como compartilha esse conhecimento com as
companheiras e os companheiros.
“Se a terra é nossa mãe, o mar é
nosso pai e não vamos deixar ser roubado de nós, por que sobrevivemos
da pesca”. Assim Maria das Graças Nascimento, afirma o processo de luta
pelo Assentamento Maceió, em Itapipoca. A área tornou-se Assentamento em
1984, em uma luta
histórica com o ex-governador, hoje senador,
Tasso Jereissati (PSDB). Porém, em 2002, Graça nos relata que a terra
foi ameaçada novamente, dessa vez pelo empresário Júlio Pirata, que
alegava ser o dono das terras próximas ao mar. À comunidade se mobilizou
mais uma vez e, desde 2007, na beira do mar existe e resiste o
Acampamento Nossa Terra.
O que há de comum entre essas mulheres?
São Mulheres que rompem com as amarras do patriarcado, veem a luta para além do fogão e da lida em casa e na roça e saindo para construir a luta politica e econômica como horizonte para possibilidade da libertação dos povos. Propõem-se a construir novas relações, além de entender a necessidade de ocupar todos os espaços de construção da luta em todas as
dimensões. São testemunhas de várias gerações de lutadores e lutadoras, são histórias que se cruzam em diferentes territórios, são vidas que se realizam na materialidade da luta, faz do cotidiano a luta do presente e inspiração para muitas seguirem na luta. As Matriarcas do Ceará mistifica a
luta numa dimensão de construção de novos sujeitos, trazendo para a juventude de novas mulheres a responsabilidade de ser militante, dirigentes e mãe do MST.
Contudo, ser futuras matriarcas do MST é ter a sensibilidade de forjar novos sujeitos para as fileiras do movimento, seguindo a inspiração das lutadoras e lutadores que antecederam a luta presente. “Ser novo homem e nova mulher”, é preciso dedicação, amor a luta e ao povo e ser matriarca é ter na dedicação e amor a inspiração para continuar marchando nas fileiras da luta e da fé.