Por Raíssa Ebrahim, originalmente postado no site da Marco Zero Conteúdo.
“Nós não somos miseráveis, somos trabalhadoras. Nossa luta é pelo reconhecimento, pela vida, pela sustentabilidade e pelo território. É uma vergonha uma mulher que só fez até a quarta série vir aqui numa plenária educar esses homens de anel nos dedos”. Os trechos da fala e as lágrimas de Ângela Vicente, pescadora de Goiana, Região Metropolitana do Recife, resumem a situação de desamparo de homens e mulheres das águas. A categoria, que há décadas luta por direitos, está no limite da fome e da espera.
Cerca de 30 mil trabalhadoras e trabalhadores locais têm visto a única fonte de renda, fruto da tradição pesqueira, ser ameaçada enquanto o crime socioambiental do petróleo segue impune, o governo Bolsonaro age na lentidão com medidas insuficientes e o Governo do Estado aposta no jogo do empurra culpabilizando as instâncias federais.
A audiência pública “O impacto do derramamento de petróleo no meio ambiente, saúde e na economia dos pescadores e pescadoras artesanais de Pernambuco” lotou a Assembleia Legislativa do Estado nesta terça-feira (3) – assista aqui a gravação completa. A voz que ecoou foi sobretudo a das mulheres, que muitas vezes garantem as contas pagas e a comida na mesa. Elas são as principais vítimas do que parece um paradoxo, mas é a realidade: o impacto social e econômico chegou mais forte onde o petróleo não chegou.
Isso porque a Medida Provisória anunciada na semana passada pela Presidência da República contempla apenas quem reside nos municípios diretamente atingidos, segundo a lista do Ibama, e possui o Registro Geral da Pesca, que não é atualizado desde 2012. Em Pernambuco, das 30 mil pessoas que trabalham com pesca artesanal, pouco mais de 4 mil terão direito, segundo atualização federal do dia 29 de novembro. O número é menor do que os 8 mil divulgados inicialmente, com base em relatório do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Isso significa que o governo, em vez de ampliar o auxílio, está cortando. No Brasil inteiro, a lista de 159 mil pescadoras e pescadores caiu para 65 mil por causa da atualização.
Na prática, a MP que legaliza o pagamento de R$ 1.996, em duas parcelas, não beneficia mulheres pescadoras marisqueiras, ostreiros e jovens de lugares como Itapissuma, no litoral Norte, que não registrou presença do petróleo. Apesar de não ter sido atingida, a terra da caldeirada e da ostra também não tem conseguido escoar seus produtos porque ninguém quer comprar.
“Ninguém quer comprar nosso pescado, como sobreviveremos?”, questiona a faixa do Movimento dos Pescadores. O pior é que, sem ter o que comer, porque não há renda, as famílias que foram expostas ao petróleo continuam se alimentando do que pescam num cenário de insegurança alimentar sem que haja sequer um monitoramento de saúde pública coletiva.
“Não estamos vendendo nada. Já está faltando pão na mesa e estamos consumindo peixe, marisco e crustáceo que sabemos que estão envenenados, mas não vamos passar fome. Não estamos aqui pedindo favor, não somos coitadinhas nem coitadinhos. Pedimos direitos. Vamos fazer esse governo ver que o povo unido jamais será vencido”, comentou Joana Mousinho, de Itapissuma, representando a Articulação Nacional das Pescadoras.
Entre a pauta de reivindicação (veja a lista completa mais abaixo), ela exigiu respostas para duas perguntas essenciais: por que o governo estadual não decretou situação de emergência e por que pescadoras e pescadores não foram chamados para compor o Comitê de Crise do Litoral de Pernambuco. “Nós queremos as respostas da Secretaria de Meio Ambiente porque o que vemos aqui são os governos federal e estadual omissos”, questionou Joana.
O jogo de empurra do Governo do Estado
O secretário estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade, José Bertotti, não compareceu à audiência porque, segundo sua assessoria de imprensa, o convite chegou muito em cima da hora, na segunda (2) pela manhã. Quem representou a pasta foi a secretária-executiva, Inamara Melo. Ela alegou que a decretação de emergência foi amplamente discutida, assim como os impactos econômicos e as repercussões da medida, e disse que não havia segurança da chegada de recursos caso a emergência fosse decretada. “Toda a cadeia seria impactada e quem iria sofrer seriam os que têm menos dinheiro”, argumentou.
A defesa do executivo estadual foi dizer que cobrou a ativação do Plano Nacional de Contingência desde o início, que vem alertando o governo federal sobre a insuficiência do auxílio anunciado e já dialogou com representantes no Congresso para acelerar emendas à MP. Segundo Inamara, o Governo de Pernambuco já tem em mãos um cadastro de cerca de 11 mil pescadoras e pescadores, feito por colônias e associações. A fala de Inamara foi duramente criticada, inclusive com o argumento, por parte de pescadoras e pescadores, de que o lobby do turismo falou mais alto.
“Independente se o governo vai ou não decretar situação de emergência para afetar a economia pesqueira, ela já está afetada, ela estagnou, está bloqueada e afetada diretamente pelo vazamento do petróleo”, explicou o professor e pesquisador do Departamento de Sociologia da UFPE , Cristiano Ramalho. “A economia parou em muitos municípios, então não é uma justificativa plausível do ponto de vista científico”, retrucou. Cristiano apresentou números que comprovam a situação, com base num estudo realizado entre 24 de outubro e 16 de novembro. (Baixe e leia o artigo do professor Dr. Cristiano Ramalho no link abaixo).
Os dados mostram que a economia pesqueira parou, em áreas atingidas ou não, especialmente para produtos como marisco, sururu, ostra e caranguejo. O impacto foi de, no mínimo, 90% no período levantado. Famílias deixaram de ir para a maré e até produtos pescados em alto mar sofreram impacto de mais de 70%. Nem a venda do salmão, importado do Chile, escapou, teve queda entre 50% e 60%.
Recentemente uma pesquisa feita na Ilha de Deus, um dos 10 territórios pesqueiros do Recife, mostrou que somente lá a pesca movimenta por ano R$ 2,4 milhões. “Se isso não é um dado importante para a economia, então eu não sei o que é importante. Ninguém vai para Porto de Galinhas comer uma picanha ou para Itapissuma comer um churrasco. A economia da pesca move outros setores, incluindo hotelaria, turismo e comércio informal”, ironizou Rodrigo Lima, biólogo da Ação Comunitária Caranguejo Uçá, da Ilha de Deus.
Pescadoras e pescadores exigem respostas concretas
Coletiva de imprensa para anunciar primeiros resultados das análises de pescados de Pernambuco (crédito: Edilson Júnior/SDA)
Mobilizada em busca de respostas concretas, o movimento pesqueiro marchou até o Palácio do Campo das Princesas ao final da audiência para entregar a pauta de reivindicações e ser atendida na busca de soluções. O mandato coletivo das Juntas (Psol), que preside a Comissão de Direitos Humanos da Alepe, junto com uma comissão de pescadoras e pescadores foram recebidas pelo secretário-executivo da Casa Civil, Eduardo Figueiredo, o assessor da pasta Antônio Limeira e o secretário-executivo de Desenvolvimento Agrário, Diego Pessoa.
Numa reunião difícil e sem avanços, em que a postura estadual seguiu responsabilizando o Governo Federal, foram entregues a relatoria e as pautas da categoria. Uma nova reunião ficou agendada para o dia 12 de dezembro na esperança de que o governo apresente respostas concretas para cada item pedido.
Confira a pauta completa:
- Decretar situação de emergência com base nos riscos ambientais, econômicos e à saúde ocupacional e à segurança alimentar de centenas de pescadores e pescadoras artesanais do Pernambuco, bem como dos consumidores do pescado;
- Adotar medidas urgentes no âmbito da saúde dos pescadores e marisqueiras, além de voluntários e crianças que entraram em contato com o Petróleo;
- Adotar medidas de monitoramento e ações de reparação dos impactos socioambientais;
- Mensurar, a partir das competências estabelecidas para o Comitê Gestor da Pesca Artesanal – CGPesca – SEMAS/PE, os impactos econômicos do incidente de derramamento de Petróleo na cadeia produtiva da pesca artesanal do estado de Pernambuco;
- Mensurar ainda, em nível de CGPesca, os impactos socioeconômicos nas atividades de comercialização de pescados das comunidade pesqueiras nos municípios que não receberam diretamente o petróleo;
- Estabelecer benefício emergencial ante a situação de vulnerabilidade econômica vivenciada pelos pescadores e pescadoras artesanais após o derramamento de petróleo, especialmente as mulheres pescadoras e os/as jovens que tem na pesca sua principal atividade produtiva, posto que grande parte destes não são beneficiários da recente medida adotada pelo Governo Federal através da MP 908/2019;
- Criar e garantir funcionamento do Comitê Permanente de Monitoramento e Ações Estratégica para enfrentamento dos riscos decorrentes do Derramamento de Petróleo no Estado do Pernambuco;
- Garantir a participação dos pescadores e pescadoras artesanais no Comitê de Crise do Litoral do Pernambuco para a questão do derramamento do petróleo, bem como em todos os Comitês que tratem da questão no âmbito do Estado do Pernambuco.
Resultado da análise de pescados e frutos do mar
O Governo de Pernambuco, por meio do secretário de Desenvolvimento Agrário, Dilson Peixoto, divulgou hoje os primeiros resultados das análises de pescados e frutos do mar feitas numa parceria com a UFRPE e a PUC Rio. Duas espécies de peixes apresentaram níveis de toxicidade equivalente em benzo[a]pireno superiores aos determinados pela Anvisa: uma amostra de xaréu e uma amostra de sapuruna, ambas coletadas nas proximidades da Ilha de Itamaracá.
Até o momento, foram analisadas 55 amostras das 94 enviadas contemplando 13 espécies de peixes, duas espécies de camarão, além de mariscos, ostras e sururus. Os peixes vieram de cinco localidades do litoral do estado: Cabo de Santo Agostinho, Canal de Santa Cruz, Ilha de Itamaracá, Sirinhaém e Tamandaré.
Na avaliação do agente pastoral Severino Santos Bill, é preciso ainda aguardar o restante das análises de outros tipos de peixes, de siris e caranguejos. As duas espécies de peixes reprovadas são de baixo poder comercial e andam em grandes cardumes. Além disso, a maior parte dos peixes divulgados nessa primeira leva são de hábitos em mar aberto, e não em áreas estuarinas e de recifes, a exemplo do budião, muito consumido por comunidades pesqueiras entre Sirinhaém e São José da Coroa Grande.
Segundo a professora do Departamento de Biologia da UFRPE, Karine Magalhães, que vem coordenando a equipe técnica do grupo de trabalho, serão realizadas novas coletas nas proximidades da Ilha de Itamaracá, local onde foram pescadas as espécies reprovadas. “Como essas áreas apresentavam manchas visíveis de óleo na época da coleta, essa contaminação pode ter sido pontual. Nesse caso, a indicação é voltar a essas localidades, coletar novas amostras para realizar novas análises e avaliar a evolução do quadro”, destacou em nota enviada pela secretaria.
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