O Movimento Antimanicomial, Direitos Humanos e Feminismo

No dia Internacional dos Direitos Humanos, o SOS Corpo - Instituto Feminista para a Democracia entrevista Priscilla Gadelha Moreira, militante da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (RENFA) e gestora executiva da Escola Livre de Redução de Danos.

Lara Buitron

No dia 10 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento elaborado para garantir direitos fundamentais a todas as pessoas após os horrores da Segunda Guerra Mundial. Embora não tenha força jurídica, a Declaração se tornou referência central nos debates globais sobre direitos civis e dignidade humana.

Historicamente, grupos como pessoas institucionalizadas, usuárias de drogas, mulheres que não se comportavam conforme os padrões sociais, pessoas LGBTQIAPN+ e aquelas classificadas como “loucas” foram alvo de desumanização, violência e práticas de tortura. É a partir dessa perspectiva que entrevistamos Priscilla Gadelha Moreira, militante da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas e da luta antimanicomial. Na entrevista, ela discute como esses movimentos têm se organizado no Brasil, quais pautas orientam suas ações, os enfrentamentos atuais e de que forma o feminismo se articula a essas lutas.

Psicóloga, Priscilla atua em movimentos sociais com base no feminismo antiproibicionista. Atualmente, é gestora executiva da Escola Livre de Redução de Danos, uma organização da sociedade civil dedicada ao cuidado, ao acolhimento, à incidência política e à produção de comunicação e informação acessível para pessoas afetadas pela guerra às drogas.


SOS Corpo –  Explica um pouco para quem não conhece, como a luta antimanicomial se organiza no Brasil? Quais são, hoje, as pautas e enfrentamentos do movimento?

Priscilla Gadelha – A luta antimanicomial é antes de tudo uma luta por um outro formato de sociedade, né? Entendendo que quem luta pela pauta antimanicomial luta em defesa de uma sociedade de igualdade de direitos e de acesso a cuidados, políticas públicas, dignidade, cidadania, contra todo e qualquer forma de tortura e encarceramento. Se quiser enxergar qual o modelo de democracia existe em um país, observe como elas tratam as pessoas com sofrimento mental, esse é um dos princípios da luta.
Então, a luta antimanicomial não se pauta apenas por fechar as instituições, esse foi um dos objetivos e um momento da história e continua sendo ainda, já que os manicômios eles vão se reconfigurando de formas diferentes, não apenas em hospitais psiquiátricos, mas em instituições que pautam cuidado a parte da lógica do isolamento e do cárcere.
As principais lutas continuam a ser a construção de um modelo de assistência psicossocial que abranja as realidades e as comunidades onde as pessoas estão inseridas, mas principalmente em levar com que o cuidado para as pessoas que estão em sofrimento sofrimento mental seja parte da agenda social e comunitária de cada região. Não esperando também apenas que um serviço faça algo, mas que isso faça parte da realidade das pessoas, já que quando a gente fala em sofrimento, em adoecimento mental, isso não é algo exclusivo de uma única pessoa, mas muitas vezes reflexo da sociedade.
Então, as doenças também se alteram de acordo com o tempo. Em um determinado tempo da história, as mulheres histéricas eram colocadas como adoecidas, quando a gente vai olhando ao tempo da história a gente percebia que na verdade fazia parte de um jogo de opressão. Então o processo de adoecimento também faz parte do momento atual. Nós estamos no século XXI agora e a doença que mais aparece para as pessoas é depressão, ansiedade, ideações suicidas que fazem parte do modelo e forma capitalista de atuar dentro da sociedade. Então o reflexo da doença também é um reflexo da sociedade.
Então a luta antimanicomial é uma luta por dignidade, cuidado, mas principalmente uma crítica à forma com que a sociedade lida com os seus problemas e constrói os processos de adoecimento ao longo da história. É uma luta por uma forma de pensamento e de construção de mundo que não perpassa apenas por uma instituição, mas por uma lógica de vida que está em nossa volta.

SOS Corpo Dia 10 de dezembro é o dia internacional dos direitos humanos, uma data onde saudamos a criação da Declaração dos Direitos Humanos, de 1948. De lá pra cá muita coisa mudou e muito foi discutido, inclusive  a própria noção de equidade e humanidade. Historicamente as pessoas internadas em manicômios foram desumanizadas a partir de uma norma comportamental da sociedade. Algo mudou a partir da reforma psiquiátrica nesse sentido? 

Priscilla Gadelha – Sobre o Dia Internacional dos Direitos Humanos, para as pessoas em sofrimento mental, a gente conquistou sim, quando a gente conquista a construção da reforma sanitária, a construção da reforma psiquiátrica, a construção do SUS e aí em um determinado momento da história, em 2001, a gente consegue construir a lei da reforma psiquiátrica e aí sim efetivar esse modelo enquanto uma lei instituída no Estado democrático de direito, a gente constrói um passo importante, mas a lei é apenas um passo, porque a mudança na forma de cuidado com as pessoas em sofrimento mental é um um lugar onde precisamos construir junto à sociedade outras formas de cuidado que não seja o isolamento e aprisionamento.
É preciso entender que existem escalas de sofrimento e essas escalas precisam também de cuidados escalonados. Se a pessoa precisa de espaço para conviver, ela precisa ter acesso, se a pessoa precisa ter um espaço para se alimentar, ela precisa ter acesso, se a pessoa quer ter um espaço para educação, para assistência social, para participar de algum esporte, ela precisa ter acesso. Todas as negativas podem levar ao processo também de adoecimento e que muitas vezes essas negativas, elas vão se ampliando a ponto de isolar a pessoa em nenhum tipo de alternativa, exceto muitas vezes nos quadros de adoecimento, de isolamento, de ficarem sós ou também no espaço de não poderem acessar convívio, dignidade e outras formas e perspectivas de vida, muitas vezes ficando refém do mercado paralelo das drogas, que a gente chama de proibição, mas que muitas vezes é o único que está ali aberto e disponível quando a gente fala, por exemplo, em juventudes.

SOS Corpo – As comunidades terapêuticas seriam as herdeiras dessa desumanização?

Priscilla Gadelha – As formas de isolamento, elas continuam existindo com esses modelos que surgem aqui no Brasil, as comunidades terapêuticas, que a gente vem chamando de novas senzalas porque na prática elas acabam acolhendo e segregando pessoas pretas, pessoas pardas, pessoas pobres, mulheres, cis e trans, pessoas que muitas vezes estão dissonando dessa lógica da normalidade que tenta ser imposta e que às vezes estão em processo de adoecimento a partir de vários fatores que às vezes não são considerados, desde a violência intrafamiliar, a falta de acesso a direitos básicos de educação, de cidadania, cultura e muitas vezes essas pessoas acabam se isolando, quer seja pelo sofrimento mental, quer seja pelo uso abusivo de algumas substâncias e esse isolamento não necessariamente está na lógica de cuidado, porque as pessoas retornam para suas casas e para as suas vidas. Então, precisamos construir modelos onde a comunidade seja inserida e onde a lógica de cuidado seja ampliada, né? Não apenas levar as pessoas para determinados espaços e esse espaço é o que cuida. A lógica de cuidado ela precisa ganhar uma esfera maior, entendendo que todas as pessoas precisam de cuidado, não apenas as que estão em sofrimento.
As comunidades terapêuticas que hoje se assolam na lógica de cuidado são muitas vezes uma tentativa de manter a lógica manicomial presente em nossas vidas e negar tudo que a gente construiu a partir da rede de atenção psicossocial, que é uma rede ampla, com vários profissionais, com acesso, que precisa sim ser melhorada, ser ampliada, ser atualizada, fazer processos contínuos de educação, mas não pode ser negada como vencendo nos últimos tempos com desfinanciamento e com negação de atendimento às pessoas.

SOS Corpo –  Existe uma conexão profunda entre a loucura, a normalização e controle dos corpos e a misoginia, e, por isso, que a luta antimanicomial deveria estar muito conectada com o feminismo, isso acontece?

Priscilla Gadelha – Sim, existe uma conexão profunda entre a loucura, a normatização e controle dos corpos e a misoginia tá dentro nisso. A lógica manicomial, ela é totalmente uma tentativa de manter esse modelo padronizado onde se tem uma lógica onde as pessoas vão ficar no espectro do normal. E o que muitas vezes, a gente percebe é que essa tentativa contínua de controle, ela foca muitas vezes em mulheres, pessoas negras, corpos dissidentes, porque é uma tentativa contínua em manter a lógica binária vigente. O feminismo tem tudo a ver com isso, porque são as mulheres que foram colocadas na primeira nau dos loucos.
As mulheres colocadas como bruxas, as mulheres colocadas como pessoas que tinham imaginação, que muitas vezes eram mulheres que idealizavam um outro formato de mundo, fugindo inclusive a lógica do normal. As mulheres que romperam com casamentos ou com tentativas de aprisionamento a partir dessa lógica patriarcal de controlar não só a natalidade, mas o que elas iriam fazer ou falar que permanece ainda nos tempos atuais e colocar no lugar de louca é o lugar mais comum para nós mulheres, sempre esse lugar de louca passa nessa realidade.
Então, esse é um lugar que o feminismo precisa e deve entrar sim. Se a gente for em instituições como comunidades terapêuticas ou clínicas de reabilitação, muitas vezes são pessoas que estão colocadas de louca lá, mas mas que estão em brigas intrafamiliares que muitas vezes não tem nada a ver com nenhum tipo de diagnóstico, mas com disputas por heranças, por acessos, por tentativas de controles a partir de homens que tentam colocar essas mulheres nos lugares onde elas não têm capacidade mental.
É super necessária a entrada do feminismo sim dentro desse espaço, e a defesa de da interseccionalidade como uma ferramenta central e urgente, não só para a luta antimanicomial ou antiproibicionista, mas pro feminismo, pra educação, pra cultura, porque no dia que a gente conseguir entender a partir do olhar da interseccionalidade, das necessidades da população, a gente vai poder chegar prioritariamente nas pessoas que mais estão precisando de cuidado e de acesso e de trazer elas o lugar de saúde, não o lugar de adoecimento, como muitas vezes a lógica manicomial tenta impor.

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