Liberdade não tem preço

Por Coletivo Liberta Elas*, na Carta Capital.

Foto: Reprodução.

Qual valor você atribuiria a um dia comum da sua vida? Ir ao trabalho, escolher uma refeição, usar o banheiro quando tiver vontade, tomar um banho mais demorado, ligar para sua mãe, conversar com amigos(as), escutar como foi o dia do seu filho ou da sua filha. Momentos simples e cotidianos que geralmente não valoramos a partir de números ou moedas. A lógica capitalista, entretanto, mercantiliza as relações humanas, atribuindo valor ao tempo e negociando a liberdade. 

Na Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco – ALEPE, a vida e a liberdade de pessoas sob custódia do Estado também estão sendo pensadas a partir da lógica punitivista e de mercado em que a matemática do custo/benefício se sobrepõe à dignidade e à liberdade humana. É o caso do projeto de lei ordinária 439/2019 que está circulando na Casa e une duas propostas elaboradas por Gustavo Gouveia (DEM), deputado estadual e empresário do ramo da construção, e pelo deputado e delegado de polícia, Erick Lessa (PP). O conteúdo desse projeto de lei pretende estabelecer no Estado de Pernambuco o pagamento, em dinheiro, pela utilização de equipamento de monitoramento eletrônico.

O uso da tornozeleira eletrônica foi regulamentado no Brasil a partir de 2010 por duas leis (Leis 12.258/10 e 12.403/11), que estabeleceram nos principais ordenamentos penais do país (Código Penal, Lei de Execução Penal e Código de Processo Penal) a utilização do monitoramento eletrônico como uma medida alternativa à prisão. O seu uso é estabelecido pelo juiz que pode determinar a utilização do equipamento como medida cautelar, ou seja, como hipótese substitutiva à privação de liberdade à pessoas sentenciadas e àquelas que ainda aguardam julgamento.

Apesar de ser uma possibilidade garantida pela lei desde 2010, o debate sobre o uso da tornozeleira eletrônica foi popularizado pela Operação Lava Jato que colocou nos holofotes figuras como ex-executivos da Odebrecht, ex-diretores da Petrobras e grandes doleiros(as). Entretanto, o perfil dos delatores da Lava Jato em nada se assemelha com o das pessoas punidas pelo sistema de justiça criminal. Para ex-diretores de grandes empresas o custo de aproximadamente R$ 250,00 mensais por tornozeleira eletrônica não geraria sacrifício econômico nem para o usuário, nem para sua família.

Leia também: Mulheres, mães e criminosas: corpos em julgamento

A realidade é que a população carcerária em Pernambuco é composta por homens e mulheres que já se encontram em extrema precariedade social onde empregos formais são cada vez mais raros ou inexistentes. Segundo os últimos levantamentos do INFOPEN (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), a maioria dessas pessoas (79% dos homens e 86% das mulheres) são acusadas de delitos como o de comércio de drogas, furtos e roubos. Em sua grande maioria, esses tipos penais são praticados como possibilidade de sobrevivência para um grande número de mulheres e homens jovens a quem políticas públicas de educação, saúde e trabalho foram negadas sistematicamente. 

Se aprovado, o PL 439/19 obrigará essas pessoas ao pagamento de uma espécie de aluguel da tornozeleira eletrônica, em que o investigado(a) ou sentenciado(a) pagará pelo uso do equipamento, gastos com sua manutenção, além da responsabilização em caso de dano ou avaria. Se antes de figurarem como réus em um processo penal, essas pessoas já se encontravam em situação de vulnerabilidade social, como atribuir esse ônus aos que utilizam ou venham a utilizar esse equipamento? Obviamente, essas medidas fortalecem a continuidade do ciclo da pobreza e o aumento das desigualdades sociais.

De forma concreta, esse projeto de lei acentua as hierarquias econômicas e raciais da população prisional que será obrigada ao trabalho no caso do preso(a) não possuir recursos próprios para pagar o equipamento. Ora, a monitoração eletrônica foi um instituto regulamentado sem qualquer menção ao pagamento do equipamento como condição para seu uso. Estariam os deputados Gustavo Gouveia e Erick Lessa querendo, mais uma vez, punir pessoas em situação de pobreza? 

Como admitir legal e moralmente que, a partir de agora, a possibilidade do seu uso fique atrelada ao fato de alguém possuir ou não dinheiro? 

Infelizmente, a rentabilidade do sistema carcerário não foi uma descoberta feita pelo deputados mencionados. Desde a invenção da prisão, na idade moderna, o cárcere foi necessário para a construção da democracia liberal e o estabelecimento do controle e disciplina de corpos para o trabalho.

No caso do Brasil, como bem relata o artigo “Entre dois Cativeiros: Escravidão Urbana e Sistema Prisional no Rio de Janeiro” do livro “História das Prisões no Brasil”, muitas cidades foram construídas por meio do sacrifício e a exploração da população escrava e carcerária. Na Casa de Detenção de Recife, o trabalho era muitas vezes praticado dentro das celas. Artesãos, sapateiros e marceneiros eram as atividades mais comuns entre os homens sob custódia. A própria administração se beneficiava do trabalho penitenciário. Segundo Clarissa Nunes Maia, autora de outro artigo da mesma obra “A Casa de Detenção do Recife: Controle e Conflitos”, na Casa de Detenção de Recife no século XIX, sapatos para o exército eram fabricados pelos presos, proporcionando uma fonte de renda extra para a direção do estabelecimento. Na Colônia Penal Feminina do Bom Pastor, na década de 1970, era comum a venda de pães, biscoitos e licores produzidas pelas mulheres privadas de liberdade.

Atualmente, o Estado de Pernambuco proporciona trabalho apenas para 7% do total de pessoas presas. Além do pequeno número de vagas, a lógica do trabalho escravo permanece no sistema prisional. Dados nacionais demonstram que 46% da população carcerária que trabalha nada ganha e 23% recebe entre 3⁄4 e um salário mínimo. Ou seja, a grande maioria do trabalho realizado no sistema prisional não proporciona uma remuneração digna. O apoio material que a maioria das pessoas presas necessitam para se manter na prisão ou pagar por assistência jurídica é feita por suas famílias. São as mulheres, mães, irmãs, filhas ou companheiras, que proporcionam o apoio material, psicológico e afetivo de quem está no cárcere. E quando essas mulheres são encarceradas?

O monitoramento eletrônico é justamente uma medida desencarceradora que pode beneficiar mães, grávidas e lactantes que tenham filhos(as) de até 12 anos e sejam presas provisórias em processos que não envolvam crimes com violência ou grave ameaça. Como informar a essas mães que diferente de Adriana Ancelmo (mulher do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral) que em 2017 conseguiu o direito a prisão domiciliar para cuidar dos seus filhos, elas não terão a mesma possibilidade pelo fato de serem pobres? 

Perguntas como essa poderão ser feitas na ALEPE, no dia 11 de novembro, em audiência pública destinada a discutir o projeto de lei 439/19. Nesse dia, o grupo de trabalho “Desencarcera”, mobilizado pela mandata das Juntas (PSOL), co-deputadas estaduais em Pernambuco, em parceria com diversas organizações da sociedade civil e coletivos como o Liberta Elas, convida todas(os) a questionar porque vidas humanas estão sendo tratadas como mercadorias na Assembleia Legislativa de Pernambuco. A todas(os) que acreditam que a lógica mercadológica não deve nortear os(as) representantes do povo, junte-se a nós para gritarmos juntas(as) “a liberdade não tem preço e nunca terá!”.*

* Edi Rock

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*Coletivo Liberta Elas

Liberta Elas é um coletivo de mulheres feminista, interseccional, antirracista, anti-punitivista e abolicionista penal.

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