Autodeterminação reprodutiva: uma contribuição feminista à construção democrática brasileira

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Desde o dia 3 de agosto, está sendo discutido no Supremo Tribunal Federal a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, que propõe a descriminalização do aborto até o terceiro mês de gravidez. Essa arguição foi ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e a Anis – Instituto de Bioética ajuizaram na Suprema Corte há um ano, no dia 8 de março do ano passado. A ação pede que a Corte declare a não recepção parcial dos artigos 124 e 126 do Código Penal pela Constituição da República. O partido alega que os dispositivos, que criminalizam o aborto provocado pela gestante ou realizado com sua autorização, violam os princípios e direitos fundamentais garantidos na Constituição Federal.

O caso está nas mãos da ministra Rosa Weber. Foram protocolados 37 Amicus Curie no Supremo Tribunal Federal sobre esta matéria. O Amicus Curiae, ou “amigos da corte”, em tradução literal, é uma expressão em Latim utilizada para designar um instrumento que tem por finalidade fornecer subsídios às decisões dos tribunais, oferecendo-lhes melhor base para questões relevantes e de grande impacto. O SOS Corpo foi uma das organizações que apresentou Amicus Curiae. Segue um resumo executivo do texto protocolado por nós, escrito pela advogada, pesquisadora e educadora do Instituto Feminista para a Democracia – SOS Corpo, Rivane Arantes.

Autodeterminação reprodutiva: uma contribuição feminista à construção democrática brasileira

A interrupção da gravidez ou abortamento é parte da vida reprodutiva das mulheres e suas razões são múltiplas e complexas. No Brasil, em 2016, 1 em cada 5 mulheres com até 40 anos já havia realizado aborto, algo em torno de 3,9 milhões de mulheres e, pelo menos 4,7 milhões já fizeram ao menos 1 aborto até aquele ano, se constituindo numa prática entre brasileiras de todas as idades, classes sociais, grupos raciais, religiões, níveis educacionais, regiões do país, tamanhos de município, casadas ou não, com e sem filhos(as), trabalhadoras ou não.

Entretanto, mesmo sendo recorrente, a realidade do abortamento não é homogênea nos diferentes grupos de mulheres. O delineamento racial e de classe é determinante na sua configuração: enquanto em 2016 a taxa de mulheres brancas que abortaram foi de 9%, a de mulheres negras foi de 29%; enquanto as mulheres que tinham renda familiar acima de 5 salários-mínimos apresentaram uma taxa de 8%, as de renda entre 1 salário-mínimo e 1 a 2 salários, apresentaram taxa de 16% e 13% respectivamente; assim como nas consequências: são as mulheres negras e empobrecidas a maioria das que são submetidas às situações de comprometimento da saúde, óbito e criminalização, inclusive o encarceramento.

Apesar dessa realidade, a interrupção da gravidez segue fortemente criminalizada no Brasil e totalmente em desacordo com os princípios constitucionais, os instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos de que o Brasil é signatário, e as várias recomendações de revisão legislativa dos mecanismos de controle convencional dos sistemas ONU e OEA. Isso nos impede de viver a autodeterminação reprodutiva, obrigando-nos a abortamentos clandestinos, em condições de saúde e insegurança que têm se constituído numa das principais causas de morbimortalidade materna e criminalização.

A legalização do aborto institui esta prática como direito das mulheres, gerando, num Estado democrático de Direito, a obrigatoriedade deste garantir a efetivação deste direito. Apenas com legalização será possível assegurar justiça reprodutiva na sociedade desigual em que vivemos nós mulheres, tanto por divisões de classe como pelas injustiças do racismo. Entendemos também que é preciso confrontar os argumentos dos fundamentalistas religiosos e conservadores em geral, que atacam as que defendem legalização ou descriminalização, e pretendem criminalizar o aborto em todos os casos. Por isso lutamos pela legalização do aborto e por isso contribuímos com o Amicus Curiae junto a ADPF 442.

Entretanto, na luta mais larga pelo aborto, nos mantemos na perspectiva do consenso expresso até aqui na Plataforma da Frente Nacional contra Criminalização das Mulheres: legalização até 12 semanas por livre decisão das mulheres, e até 20 semanas em casos de violência sexual. Pré-adolescentes, adolescentes, jovens e mulheres adultas, ao sofrerem violência sexual precisam de um tempo para se recompor e poder tomar decisão informada sobre o seguimento ou não de uma gestação fruto de estupro. Em especial as mais jovens de nós, muitas vezes sequer percebem a gravidez nos primeiros meses, razão pela qual defendemos este consenso.

Este texto compartilha brevemente os argumentos que sustentaram o pedido de Amicus Curiae apresentado pelo SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia na ADPF 442 que tramita no STF. A ADPF é uma das estratégias utilizadas pelo feminismo brasileiro para garantir como direito humano, a autodeterminação reprodutiva das mulheres, no contexto de golpe institucional e avanço de perspectivas misóginas-facistas-racistas-capitalista na sociedade e Estado Brasileiro. Apresentamos rapidamente a situação de abortamento no país, os elementos que orientaram nossa argumentação no Amicus, e um histórico da atuação do SOS Corpo na luta pela não criminalização das mulheres e legalização do aborto.

 

Direito ao aborto para todas as mulheres

O direito à interrupção da gravidez, ou seja, a prática do abortamento é um direito humano das mulheres, no entanto, segue negado e criminalizado pelo Estado Brasileiro que, organizado sob a determinação do sistema patriarcal, racista e capitalista, se serve do controle sobre o corpo de nós mulheres, principalmente sobre a nossa sexualidade e a reprodução, como meio de dominação. Nesse sentido, compreendemos que os mecanismos de controle de nossos corpos foi uma dimensão do Estado brasileiro patriarcal e racista no passado e, apesar de muitas mudanças, ainda permanecem estruturando-o na contemporaneidade.

Todavia, entendemos que a autodeterminação reprodutiva é um direito e uma questão de justiça para nós mulheres. A decisão livre e autônoma sobre o que se passa em nosso corpo não é apenas uma questão de liberdade, mas de igualdade também, dada a importância das condições materiais para sua realização. Portanto, o livre exercício dos direitos reprodutivos é um direito humano das mulheres e sua vivência é a nossa contribuição à construção democrática brasileira. Disso decorre que a manutenção da criminalização de nós mulheres, pelo fato do aborto seguir ilegal, é totalmente incompatível com os princípios de direitos humanos e o Estado democrático de direito definido como paradigma do Estado Brasileiro pela Constituição Federal de 1988, em que pese as sucessivas violações e desrespeito a esta, no presente.

Um Estado de Direito que se pretende democrático há de prover democracia substantiva, e isso não ocorrerá se nós mulheres seguirmos objeto de tutela, se não tivermos pleno controle sobre o que se passa sobre nosso corpo, se não formos consideradas sujeitos de direitos, se não decidirmos sobre nossas vidas.

A ADPF 442 é uma iniciativa legítima. A luta pela legalização do aborto é uma estratégia necessária, e deve encampar todas as iniciativas que dialogam com esta proposição.

 

Sos Corpo na luta pela legalização do aborto

O SOS Corpo é uma organização da sociedade civil brasileira, situada no Recife/PE, Nordeste do país, que se constituiu em 1981 a partir do trabalho sobre saúde das mulheres, sendo o corpo e a reprodução suas questões fundamentais. Desde então vimos desenvolvendo atividades sobre saúde sexual e reprodutiva, trabalho e violência, participação política e fortalecimento da organização política das mulheres, sobretudo em ações de educação, comunicação, pesquisa e ação política. Atualmente, somos um instituto feminista que produz conhecimento sobre o cotidiano e os direitos das mulheres, tendo como uma das áreas de acúmulo, a pesquisa e atuação no campo da saúde e direitos reprodutivos.

Desde sua origem o SOS Corpo tem atuado pela legalização do aborto e, mais recentemente, com a ampliação da repressão, contra a criminalização das mulheres. Tem feito isso em nome próprio e a partir das iniciativas da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) cuja estratégia é construir a luta pelo direito ao aborto a partir da organização das mulheres, articulando-se à Frente Nacional Contra Criminalização das Mulheres e Pela Legalização do Aborto em todo o país. O SOS Corpo contribuiu na construção desta coalisão por entender que a ação organizada de grupos, coletivos e movimentos sociais é a forma mais democrática de ampliar e qualificar o debate sobre as questões reprodutivas na sociedade e de democratizar a própria democracia, reconhecendo nos direitos das mulheres à autodeterminação, a condição de sua realização.

Nestes 37 anos de história, desenvolvemos atividades educativas com as mulheres populares e de periferia, rurais e urbanas, com base na educação popular e pedagogia feminista. Os estudos e investigações próprias e em co-participação com centros acadêmicos do Brasil, institutos de pesquisa, organizações da sociedade civil e organismos internacionais também são parte de nossas práticas, assim como a produção de material didático, impressos, audiovisuais e publicações que disseminam e debatem o pensamento crítico e a prática política feminista. Na década de 80 colaboramos com a construção do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM) e os debates internacionais que instituíram e consolidaram os direitos reprodutivos como conceito e proposição do movimento feminista. Ainda nesta década, no processo Constituinte, fomos uma das organizações feministas que liderou a construção da Emenda Popular pela legalização do aborto. No final dos anos 90 e início de 2000 fomos responsáveis por fazer, no Congresso Nacional, a defesa dos direitos das mulheres em nome do movimento feminista brasileiro, contra a PEC de iniciativa do então parlamentar Hélio Bicudo, que abordava a origem da vida desde a concepção. Também participamos de todas as conferências sociais da ONU e integramos o Conselho Consultivo Internacional da Rede Mundial de Mulheres por Direitos Reprodutivos.

No plano das políticas públicas, integramos por muitos anos, a Comissão Intersetorial de Saúde da Mulher (CISMU) do Ministério da Saúde (MS), órgão onde tramitam as normas de atendimento às mulheres sobre contracepção, parto e abortamento. Neste, atuamos na gestão que propôs que o MS regulamentasse os casos de aborto previstos em lei. Por fim, integramos a Comissão de Cidadania e Reprodução, organização da sociedade civil formada por especialistas em população, reprodução e direitos reprodutivos  além de ter sido uma das que criou as Jornadas Brasileiras pelo Aborto Legal e Seguro. Esta coalisão antecipou a Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto, que está impulsionando a luta atualmente.

 

*Por Rivane Arantes, advogada, pesquisadora e educadora do SOS Corpo.

 

¹ Pesquisa Nacional de Aborto (PNA/2016) In: Revista Ciência & Saúde Coletiva da Associação Brasileira de Saúde Coletiva. 0486/2016 In: http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/pesquisa-nacional-de-aborto-2016/15912?id=15912 acessado em 08.12.207.

 

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