MULHERES em tempos de pandemia: Vivências, aprendizados e esperança

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Nestes últimos dias, como muitas de nós, vivenciei uma ebulição enorme dentro de mim. Vivenciei e vivencio muitas dúvidas, preocupação com quem está perto de mim, com quem está longe e com a situação de vulnerabilidade da maioria da população brasileira.

Tenho a sorte de pertencer a um coletivo de trabalho como o SOS Corpo e a um movimento como o FMPE – AMB. Tenho a sorte de pertencer a espaços de coletividade feminista. Ver a movimentação das companheiras do Coletivo Leila Diniz, a grande maioria mulheres desempregadas, dividindo o pouco que tem. Ver as iniciativas, a construção das redes de solidariedade, as jovens se movimentando junto com as mais velhas. A preocupação com nossas militantes que estão na periferia, nos lugares em que a necessidade mais urgente é a alimentação, onde não chega água tratada nem saneamento básico. E onde a maioria são mulheres negras, que já acumulam tantas outras desigualdades.

Ver esta organização me faz acreditar mais ainda em nosso ideal que busca transformar o mundo pelo feminismo. Perceber as redes de solidariedade se implementando em todo o mundo e entre nós localmente, me remete à fala de Patricia Hill Collins:

É muito contraditório, mas esta Pandemia tem nos aproximado muito mais. Neste momento estamos vivenciando uma distância física entre nós, no entanto, temos uma sensação de muito acolhimento, nos cuidando e cuidando das outras. Um ato político e de muita amorosidade. Eu, como muitas que estamos no grupo de risco, seja pela idade ou por outros motivos, temos recebido mensagens de pessoas que estão longe de cidade e de pais perguntando como estamos e pedindo para nos cuidarmos.

Lembro da Poesia de Cidinha Silva, que apela para ficarmos juntas, por que nenhuma de nós vai conseguir sozinhas. E sinto que estamos, sim, juntas!

Tenho grupos de amigos e amigas que não são da militância, no entanto nossos laços são muito fortes. Um deles, no Whatsapp – Cirurgia de Analba – foi criado desde a minha primeira cirurgia de glaucoma. Neste espaço, as pessoas permanecem antenadas com todo esse processo que estou vivenciando há quase a um ano e meio. Amizades alimentadas e construídas por muito tempo, da juventude, algumas desde a adolescência – olha que faz muito tempo mesmo. Também estou em grupos com amigas que tem a idade de meu filho, algumas até muito mais jovens que ele e que neste momento estão também me cuidando muito.

Solidariedade. Um valor que aprendi com meus pais quando criança e vejo neste momento disseminado de uma forma linda e potente. Valor também muito presente no feminismo que junto com milhares tenho trilhado. Muito presente na história de vida das minhas ancestrais.

Em minha casa, a chamada agora “casa da gente”, somos quatro moradoras e um morador – um cachorrinho doce e peralta que não é mais só meu, e tem alegrado nossos dias de confinamento. Nesta última semana, estávamos umas cuidando das outras, pesquisando chás e outras coisas para aumentar nossa imunidade e dividindo as preocupações com nossos familiares, mães, pais e amigos que estão longe de nós. Assistindo filmes, lendo e escutando música, sem, no entanto nos desligarmos das notícias do zap.

Quanto à minha família de sangue, a chamada família nuclear, mãe e irmãos, Somos dez. Praticamente todos estão no grupo de risco. Seis têm mais de sessenta anos, uma (eu), chegando aos sessenta e três estão entre 49 e 57. Temos irmãos que possuem agravantes como diabetes, pressão alta, além da idade na faixa mais avançada. Um irmão mais velho é trabalhador informal e não pode fazer quarentena. Outra, mais jovem, possui 48 anos, é técnica em enfermagem, portanto também está no grupo de risco e continua na frente de trabalho.

Minha mãe, 89 anos, sem visão e totalmente dependente. Como resolver os cuidados com ela e com quem cuida dela? Com toda a consciência de que as cuidadoras também precisam se cuidar, como resolver este dilema? As duas cuidadoras, que dividem uma casa e moram longe, precisavam pegar ônibus pra chegar em casa, felizmente, por iniciativa delas, pediram pra permanecer em casa com mamãe. Vamos, portanto, aumentar a nossa cotização para pagar as horas extras. E elas estão organizando dentro de casa o rodízio do trabalho, revezando escalas. A gente segue acompanhando, mesmo a distância, por meio da câmara que instalamos dentro de casa.

Elas também se sentem mais seguras sabendo que estamos acompanhando. Proibimos as visitas e meu filho, que mora no andar de cima, também está enclausurado e recebendo a comida pelo portão, para evitar qualquer contato. Ele também é parte do grupo de risco. Tem bronquite asmática. Me preocupo também com ele.

Mamãe está sentindo a falta da presença dos filhos e filhas, principalmente das que estavam mais frequentemente em casa, mas, linda como ela é, compreende e, quando falo com ela, diz: “e esse danando do coronavírus que tá fazendo isso com a gente?”. E diz que está sendo bem cuidada e que não vai deixar os beijoqueiros chegarem perto. Está com as cuidadoras, mas com saudade da gente. Como ela é cega, videochamada não adianta. Esta também tem sido uma maneira de nos vermos e nos sentirmos mais próximas.

Minha viagem para São Paulo

Em meio a uma pandemia, tinha uma necessária cirurgia de glaucoma marcada. Com todo o estresse que foi tomar a decisão de viajar, ainda houve a tensão no aeroporto, na madrugada do dia 21. Eu iria pegar o vôo às quatro e quinze da manhã, já tinha feito o check in em casa. Cheguei às duas e não consegui embarcar. Passei, então, quase seis horas em pé, na fila, próxima a muita gente. Todo mundo perto um do outro, a maioria portando máscaras, de adultos a crianças. Os funcionários e funcionárias da Azul correndo de um lado para o outro. Tentando resolver.

Algumas pessoas na fila já vinham de outros voos cancelados, estressados e jogando toda a sua raiva e indignação nos funcionários que ali também estavam, correndo riscos como nós.

Uma mulher jogou uma garrafinha de água numa funcionária. Um homem gritou palavrões com outro e bateu com forca na bancada. Outro subiu no balcão e foi necessário chamar a polícia. Eu ali, tentando acalmar algumas pessoas na fila, explicando que os funcionários não tinham culpa do caos e pensando comigo mesma: realmente a corda quebra do lado fraco.

Muitos estavam em Recife de férias, voltando para casa com suas famílias. Muito medo envolvido, mas muito egoísmo também. Quando chegou a minha vez, conversei com a atendente, que me disse o quanto está difícil para elas. Pude ver como ela estava destroçada, mas segurando firme. Mesmo se protegendo para não se contaminar, com medo de se contaminar também pelo estresse e perder seu emprego. As imagens no aeroporto me lembraram muito o livro Ensaio sobre a cegueira.

Voltei naquele dia para casa. Por um lado, foi bom. O meu voo foi marcado para a tarde do domingo. Pude descansar, escutar música, ficar com meu cachorrinho e ainda fazer um bolo de banana para trazer, já que não tinha conseguido assar ele na sexta-feira. E com as amigas confinadas na mesma casa, assistimos a um seriado de seis capítulos de uma vez só. A história da primeira mulher negra que ficou milionária nos EUA. Instigante, repleto de questões para se pensar.

De volta ao aeroporto. Dessa vez cheguei três horas antes, toda paramentada, consegui máscaras e álcool gel, através de Fabiana, uma amiga. O aeroporto estava mais tranquilo, reencontrei várias pessoas que estavam próximas na fila da madrugada anterior. Todos mais calmos. Fui à farmácia e consegui mais um frasquinho de álcool gel, conversei também com a atendente da farmácia. Ela, trabalhando também com medo, me contou sobre como as pessoas as tem tratado quando chegam pra comprar álcool ou mascaras e elas dizem que só podem vender a quantidade de duas por pessoa. Geralmente, segundo elas, são homens, a quem ela chamou de “bem apresentáveis”. Entendi que são os mais afortunados, que chegam mandando e dando ordens e xingando.

Ela também me disse pra eu ter cuidado, não pegar em nada, por que ela não viu em momento nenhum ser feita assepsia no aeroporto. A respeito das conversas que ouvi e da identidade de quem estava no aeroporto, fiz também o censo que sempre tenho feito nos lugares públicos. O aeroporto voltou a ser branco. Pouquíssimas pessoas negras novamente neste espaço.

Tinha dúvida também a respeito do uso da máscara pelas pessoas que não estão doentes, mas, nessa experiência no aeroporto, aprendi que é necessário. Na prática, ninguém guarda um metro de distância das pessoas. É todo mundo juntinho. Seja nas cadeiras, seja na fila e dentro do avião. O avião para e imediatamente todos levantam, uns colados aos outros. Nesse momento, me deu uma grande aflição. Tentei ficar sentada, mas os dois que estavam no meu lado quiseram se levantar.

O aeroporto de São Paulo estava bem mais vazio do que o de Recife, ao menos no terminal onde desembarquei. Meu amigo veio me buscar e já chegou com uma feirinha básica de frutas e água. Caminho rápido com pouco trânsito. Ruas vazias até chegarmos ao centro, perto do endereço em que eu estou hospedada. Vi muitas pessoas na rua, predominantemente homens e a sua maioria homens negros, em duas esquinas que paramos dava para ouvir suas vozes e sotaques, que meu amigo identificou como de nigerianos.

Mais à frente, vimos muitos também na rua. Esses, segundo Leandro, eram os moradores da Cracolândia. Eram muitos. Quase todos pretos. E ele me contava que quando parou no mercado para fazer compras para mim, alguns estavam parados na porta, sendo afastados por policiais que chegaram mandando eles irem pra casa. Eles disseram “que casa, não tenho casa?”.

Nessa hora, me passou na cabeça o que estamos conversando nas listas do Whatzapp entre nós: a frase “Fique em casa” só serve para alguns. Imediatamente me veio a letra da música de Gilberto Gil, que o escutei cantando no Domingão do Faustão que vim assistindo na viagem de avião: ah! mundo tão desigual, como é tão desigual.. de um lado este carnaval, do outro a fome total…. Em nosso caso, ainda temos um governo que está aprofundando cada vez mais esta desigualdade, privilegiando o capital e não o povo.

Estou agora na minha casa temporária , um airbnb em São Paulo. Foi extremamente difícil tomar esta decisão. E esta decisão só eu mesma poderia tomar. Realmente, um momento de extrema solidão. Muito apoio de amigas e familiares que achavam que eu deveria vir e muitas outras pessoas, inclusive meu filho, achando que era loucura. Acompanhando as notícias e vendo a situação de São Paulo, por vários momentos tive medo e insegurança, muito apreensiva.

Quando conversei com a minha médica, por diversas vezes escutei dela que compreendia que eu tomasse a decisão de não vir, mas que o meu caso era urgente e não dava pra saber por quanto tempo poderíamos adiar. Também tinha um problema que precisava resolver. Desta vez, com o isolamento necessário das pessoas, diferentemente das outras vezes que vim, como buscar amigos para ficar comigo, se todos precisam ficar isolados? As três primeiras vezes que vim pra São Paulo, tive acompanhantes que ficaram os primeiros dias comigo. Outras duas vezes, contei com o rodízio de amigos e amigas que moram em SP, quase todos, amizades construídas em Natal e que nos reencontramos aqui – amigo(a) é coisa pra se guardar no lado esquerdo do peito, como canta Milton Nascimento…

Senti que a minha rede de solidariedade em São Paulo desta vez tinha que ser diferente. Vim sozinha, com consciência da dificuldade que seria. Como esta é a sexta vez aqui e espero que seja a última, sei de tudo que não posso fazer. Já estou uma expert no que posso e no que não posso fazer. Por isso me preparei. Trouxe antepasto de berinjela, manteiga ghee, molho pesto, molho de tomate, bolo de banana – tudo feito por mim, fiz uma feirinha básica no armazém do campo e vou deixar outas coisas preparadas. Não vou poder cozinhar nos primeiros dias, nem descer elevador para pegar comida do ifood. Então para esses cinco dias primeiros, está tudo dominado.

Como já estava sabendo que a situação seria esta, me preparei: uma amiga está cuidando de filho pequeno, outra, que sempre me recebeu, faz parte do grupo de risco por idade, também tem pressão alta e diabete, dessa vez não vai poder me receber. Duas outras que vieram das outras vezes ficar comigo no rodízio moram longe, uma delas está muito gripada, outro amigo que me acompanhou uma vez na cirurgia também está sem poder ir. Porque tem imunidade baixa.

Seu companheiro, que é medico, achou melhor ele não ir e está se programando pra estar comigo. Como ele está também na linha de frente no Hospital das Clínicas, avalia que a imunidade dele é boa e está mais apto. O que me tranquilizou. No entanto, tudo vai se ajeitando e se resolvendo. Tenho fé e tenho amigos e amigas. Mesmo apreensiva, acho que tomei a decisão certa. Andar com fé eu vou, que a fé não costuma faiar, como canta Gilberto Gil. A esperança é o que me move internamente, por que, como diz Patricia Hill Collins: Sem acreditarmos no amanhã não é possível prosseguir.

Estava querendo muito compartilhar esta minha vivência. Foi muito bom pra mim escrever sobre ela, vai me ajudar a refletir sobre este momento em que a pandemia está se alastrando e, no meio disso, estou aqui pra fazer uma cirurgia e me cuidar.

Eu me sinto preparada e devo isso às relações amorosas que me cercam. Resolvi escrever hoje, que ainda estou podendo, mas vou continuar escrevendo esta experiência, de confinamento em outra cidade, longe de familiares e da energia da minha casa. Mas perto de outros e recebendo o acolhimento a distância. Já marquei momentos com meus sobrinhos e sobrinhas pra nos ver e cantarmos, com outras amigas de Natal, para contarmos nossas experiências de confinamento, com outras para fazermos saraus de poesia, tudo para quando eu estiver liberada pela médica. E, claro, com cuidado e aos pouquinhos. E como não vou poder escrever, vou gravar no celular que já sai escrito e depois arrumo as pontuações. Acho que isso só na próxima semana. Animada com estas possibilidades.

Isso..lavar as mãos, passar álcool gel e não colocar as mãos no rosto é o meu mantra!

Gratidão!

Analba Brazao Teixeira

4 thoughts on “MULHERES em tempos de pandemia: Vivências, aprendizados e esperança

  1. Obrigada pelo relato, Analba. Chorei… mas tem feito parte chorar nos ultimos dias – não só de tristeza, raiva… mas pelas belezas das partilhas, alegrias e possibilidades de seguirmos em solidárias lutas. Boa sorte na cirurgia. Michela

  2. Gratidão Amiga,pela partilha desta vivencia profunda. Estou longe, mas sinta que também estou perto de Voce.
    Abracos que nos enlacam sempre!

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